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Atravessando a Ilha Grande correndo

Redação Webventure/ Outros

Dia 17  02h55 - Giovanni descansando na Praia de Baixo. (foto: Arquivo pessoal)
Dia 17 02h55 – Giovanni descansando na Praia de Baixo. (foto: Arquivo pessoal)

Eu havia acabado de voltar do Deserto de Mojave quando Giovanni Mello, meu “treinando” (maneira carinhosa como chamo todos que treinam sob minha supervisão) e companheiro de aventuras, convidou-me (seria melhor: impôs-me!) a tornar realidade um antigo projeto seu: contornar correndo a Ilha Grande, no litoral do Estado do Rio de Janeiro.

Essa trilha, bastante conhecida entre os montanhistas, é feita caminhando-se entre três e sete dias, com os devidos pernoites em pontos paradisíacos da ilha, o que não é nada difícil de achar. Para se ter uma idéia, alguém fechando os olhos em frente a um mapa da ilha e indicando com o dedo um ponto qualquer, pode apostar dez pra um que apontou para um paraíso ecológico, independente de ter acertado na terra ou no mar.

Ponto nevrálgico – Em poucas reuniões definimos os detalhes práticos e estratégicos desta inédita corrida. O ponto nevrálgico do projeto seria o trecho entre Caxadaço e Dois Rios, devido ao pouco uso da trilha e às dezenas de desvios de pescadores. Assim, para evitar pegar este trecho durante a noite, o que dificultaria sobremaneira a navegação, invertemos o sentido inicial da travessia, passando a correr no sentido horário. Assim, chegaríamos àquele ponto antes do final da manhã.

No dia 15 de novembro, ao entardecer, estávamos na proa de uma pequena traineira sentindo um delicioso vento no rosto, enquanto víamos a Ilha Grande crescer cada vez mais à nossa frente. Depois de armarmos nossa barraca em um camping na Vila de Abraão e comermos uma deliciosa pizza à lenha, tentamos dormir para acordar às 5h.

Eu disse “tentamos” porque a maioria das barracas estava ocupada por “campistas de feriado”, que não têm capacidade de perceber a diferença entre uma boate e uma área de camping. Pagamos um preço alto por não termos passado esta noite em um caro hotel cheio de estrelas. Acordamos dezenas de vezes durante a noite, iniciando nossa manhã com mais vontade de dormir do que correr…

Com uma foto às 6h10, instantes antes de nossa partida, registramos o início de mais este desafio. Depois de trotarmos dez minutos demos uma parada e nos alongamos despreocupadamente. Sabíamos que este tempo gasto seria de muita valia durante toda a corrida.

Em seguida, voltamos a correr, preocupando-nos em ingerir água ou isotônico a cada dez minutos, religiosamente lembrados por nossos cronômetros. Sem falar nos complementos de guaraná em pó, ginseng, BCAA, ginko biloba e lecitina de soja, tomados regularmente segundo a tabela dada por nossa nutricionista Christiane Rodrigues.

Nossa primeira parada foi perto das 11h, ao chegarmos a Dois Rios, depois de passarmos quase que tranqüilamente pelo trecho que tanto nos preocupava. Realmente, as dicas dadas na véspera por um veterano caminhante local, foram valiosas. Comemos então nosso primeiro sanduíche de queijo e fizemos alguns exercícios de alongamento.

Na Reserva Biológica – Às 12h41, ao chegarmos em Parnaioca, presenciamos uma cobra almoçando um sapo. Este foi um bom motivo para descansarmos uns três minutos, observando e fotografando. Continuando, os cenários revezavam-se entre montanhas e praias, praias e montanhas, indefinidamente.

Em uma dessas trilhas cruzamos por dois caminhantes que nos alertaram da presença de fiscais do Ibama no início da Reserva Biológica, fazendo restrições à passagem. Na dúvida sobre a possibilidade de cruzarmos esta área, mesmo sem estarmos levando barraca e equipamentos para acampar, torcemos para eles subirem no helicóptero e irem almoçar, deixando-nos algum tempo para corrermos pela Reserva.

E não é que a força do nosso pensamento deu certo? Quando estávamos exatamente no ponto em que seríamos visto se passássemos ou perderíamos tempo se parássemos, eles levantaram vôo. Este foi mais um motivo para acelerarmos nossa velocidade e cruzarmos toda a Reserva Biológica o mais rápido possível.

Água turva – Perto das 14h, chegamos ao mangue que separa a Praia do Leste e a Praia do Sul, ainda dentro da Reserva. Este foi um momento tenso, pois a água estava completamente turva e não tínhamos qualquer possibilidade de cruzá-la calçados com os tênis ou correríamos o risco de ficar com bolhas nos pés quando voltássemos a correr com tênis molhados durante várias horas.

Em compensação, o risco de furarmos um pé poderia por o projeto a perder. Mas nada de errado aconteceu e cerca de vinte minutos depois já estávamos correndo sobre uma areia mais macia do que devia. Chegando ao final da Praia do Sul, outro limite da Reserva Biológica, encontramos mais fiscais do Ibama que desfizeram nossa errônea idéia de que seríamos barrados mesmo não acampando.

No meio da tarde, chegamos à Praia dos Aventureiros. Outro sanduíche e um chocolate deram-nos gás suficiente para enfrentarmos uma das mais íngremes subidas do circuito, que nos levou até Provetá. Lá, fomos direto à padaria e tiramos a barriga da miséria. Até sorvete caseiro teve! Nada mal para um desafio desses…

Tentando tirar o atraso desta parada voltamos a correr em um ritmo muito bom, mantendo uma velocidade bem razoável até durante as subidas. E finalmente a noite chegou. Estávamos em uma das muitas pequenas vilas de pescadores que existem ao redor da ilha, quando bateram 19h15 e o sol, que já havia se posto há alguns minutos, não conseguiu mais manter sua tênue claridade.

De lanterna na cabeça, continuamos correndo quando um fortíssimo temporal desabou sobre toda a Ilha Grande. Às 22h, com a intensidade da chuva exatamente igual aos primeiros minutos, não conseguíamos correr sem escorregarmos nas íngremes descidas que mais pareciam feitas de sabão molhado. Esta situação prorrogou-se até 0h30, quando nos abrigamos na varanda de uma escola local.

O sol de volta… – Ironicamente, após cerca de quatro horas de um absurdo e ininterrupto temporal, a chuva praticamente acabou quinze minutos após termos nos abrigado. De volta à corrida, continuamos sem grandes paradas até chegarmos ao Saco do Céu, pouco depois das 5h, quando o sol teimava em novamente aparecer. Este lindo trecho do percurso, valorizado pelos primeiros brilhos do sol, foi percorrido intercalando-se corrida e caminhada, pois toda nossa musculatura já dava sinais de um quase completo esgotamento.

Como se estivéssemos acordando de um pesadelo, com a noção exata de sentir a existência de cada músculo e articulação do corpo, passamos pelo Aqueduto e, minutos depois, avistávamos nosso ponto de chegada ao longe. Isto resgatou-nos uma energia não-sei-de-onde, e voltamos a correr em um ritmo vitorioso. Devido à nossa empolgação, erramos o cálculo da distância, pois havia uma curva disfarçada pela paisagem, o que nos obrigou moralmente a manter o tal ritmo vitorioso por mais tempo do que esperávamos.

Finalmente, às 7h51 de 17 de novembro, exatas vinte e cinco horas e quarenta e um minutos depois, chegamos em frente ao ponto de onde havíamos partido na véspera. Mais uma vitória sobre nós mesmos e nossas fraquezas!

Comemoramos com dois sanduichões e muito leite na padaria mais próxima e com um sono pesado até o meio da tarde. Acordamos planejando nossa próxima corrida-desafio, que será dentro da cidade do Rio de Janeiro…

Este texto foi escrito por: Carlos Sposito

Last modified: dezembro 27, 2001

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