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Estrada Real, um passeio pelo Brasil antigo

Redação Webventure/ Aventura brasil

Convite do Arraiá dos montanhistas (foto: )
Convite do Arraiá dos montanhistas (foto: )

Do Rio de Janeiro a Juíz de Fora. A pé. O que parece insano era bastante comum na época de um Brasil dominado por Portugal. Naquele tempo que só se ouve falar nas aulas de História, época de um país rico em ouro e diamantes. De Tiradentes. E da Estrada Real. Este caminho, possível de se percorrer ainda hoje, tem fascinado viajantes brasileiros e virou tema de um guia em 1999.

O trecho que leva até Juíz de Fora é apenas uma parte da Estrada, usada no fim do século 18 e início do século 19. Ele se iniciava em São Sebastião do Rio de Janeiro, então capital do Brasil-Colônia, e seguia até a Fazenda Juíz de Fora (MG). Mapear e ensinar o “caminho das pedras” foi o desafio que o mineiro Raphael Olivé abraçou. E a paixão começou na Espanha. “Nunca tinha andado na vida até que, em 1994, fui convidado a fazer o caminho de Santiago de Compostela. Gostei tanto que voltei ao Brasil louco para fazer outra viagem a pé e comecei a pesquisar sobre a Estrada Real”, conta. “Este é o nosso Caminho de Santiago”.

Olivé pois os pés nele ainda em 94 e foi enfrentando com amigos os percalços. “Eu fui me perdendo para que as outras pessoas não se percam hoje”, brinca. Conseguiu montar uma obra completa, de fácil leitura e muitas dicas de quilometragens e lugares para dormir a cuidados específicos que as mulheres devem tomar.

O Aventura Brasil convida a esta viagem pela história. Deixe as palavras e o pensamento levarem você de volta aos tempos em que o melhor meio de transporte do mundo era os pés. Quem sabe eles não venham futuramente trabalhar na Real.

Muita gente achava as aulas de história um sonífero. Mas, caminhando pela Estrada Real, não há como se entediar. Foi em 1698 que se decidiu pela criação de um caminho ligando a região das Minas à capital do Rio de Janeiro. O trecho foi chamado Caminho Novo, mais tarde, Estrada Real.

Antes dele, para se chegar ao Rio, era uma verdadeira saga. Saindo de Minas, o roteiro era desembarcar em Parati, subir a Serra do Mar adentrando no estado São Paulo e passando pelos municípios de Cunha, Guaratinguetá e pela Garganta do Embaú, até chegar à Serra da Mantiqueira. Depois, seguiam-se Baependi, Carrancas, Tiradentes, Antonio Dias e Ouro Preto (MG).

Em 1720, a Corte Portuguesa declarou este novo caminho o oficial para o tráfego do ouro, pedindo melhorias para o trecho mais complexo, da Serra do Couto. Casas que serviam como alfândegas, ricas fazendas, igrejas e outras construções ainda podem ser vistas na Estrada. Ao longo dela, desfilaram personagens da História: Dom Pedro I, Duque de Caixias e Tiradentes, que teve os quartos expostos ali depois de ser esquartejado na Inconfidência Mineira.

Hoje, segundo Raphael Olivé, autor do guia, está tudo abandonado. “Vai depender das comunidades locais e dos viajantes conservar esses lugares”.

A proposta do guia escrito por Olivé, único do gênero sobre esta trilha, é percorrer o trecho Rio-Juíz de Fora em cinco dias. Muita gente escolhe apenas alguns trechos. O autor adverte que é possível percorrê-los de bicicleta também.

A Estrada exige um bom preparo físico e conhecimento ou boas referências dos locais. Não há sinalização, nem todos os trechos têm pousadas e restaurantes, não existe esquema de segurança.

Para cumprir a proposta de trajeto de médios 25km/dia, em uma semana, é preciso andar de oito a nove horas. Importante dica: “para quem nunca viajou a pé, desaconselhamos enfaticamente a viagem solitária”, adverte Olivé. Segundo ele, o número ideal de viajantes é três.

Malas prontas Na Estrada, diz o autor, o clima não tem bruscas mudanças durante o ano. Escolha roupas esportivas, de tecidos leves, e, se possível, bem coloridas, pois o caminho passa por estradas de asfalto. Calçado é item fundamental: nada de estrear um novo par na caminhada. Escolha os já amaciados (não gastos), entre botas de trekking e tênis. Outra dica para caminhadas longas é usar chapéu e não boné – e um cajado, para dar equilíbrio nas descidas e que pode ser um objeto de defesa.

Como tudo será carregado nas costas, leve o necessário para não sentir o peso. Olivé recomenda um kit bastante econômico: saco de dormir leve, garrafa de água ou cantil, canivete, lanterna e sabonete. Indispensável: um saco de lixo para não deixar rastro de sujeira. Acrescente o protetor solar. Para comer, o conselho é frutas desidratadas, chocolate. Sanduíches leves são bem-vindos, mas têm conservam-se por pouco tempo. “Evite almoçar”, alerta o guia. “Prefira uma ceia rica e saudável.”

Um ponto interessante do guia é dedicar conselhos especificamente a mulheres. “São elas as que mais nos procuram interessadas em fazer o caminho”, justifica Olivé. As dicas incluem ir a uma pedicure para limpeza e cuidados com as unhas antes da viagem, evitar depilações em regiões sensíveis (para evitar irritações causadas pela transpiração) e descansar dez minutos a cada duas horas na trilha.

Tudo pronto para a viagem. É possível dividí-la em sete trechos, um a cada dia, como propôs Olivé. Confira abaixo alguns comentários sobre cada um deles, para ter uma idéia do que a Estrada reserva. Bom passeio!

Rio-Petrópolis

É o trecho mais longo, “com contrastes e adrenalina”, diz Olivé. Começa com parte marítima, atravessando a Baía de Guanabara, entra pela foz de um rio, atravessa a Baixada Fluminense e escala a Serra do Mar. Atravessar o rio Inhomirim, ou Estrela, é um dos desafios. “É preciso calcular a chegada à foz do rio com a maré cheia.. Desaconselhamos a chegada com a maré baixa, mesmo com barco de pequeno calado”, orienta o guia. No minimo, sete horas de caminhada. A chegada em Petrópolis permite um “dia de turista”, com pernoite em pousadas/hotéis, refeições em restaurantes e visitas a pontos históricos da Cidade Imperial.

Petrópolis/Itaipava

“Esta etapa é basicamente urbana”, ensina o guia. “E são cerca de 25km, em descida”. Olivé destaca a série de referências históricas que se cruza no trajeto, como o antigo túnel da Estrada de Ferro, estrada União e Indústria, antiga sede da Fazenda Samambaia tombada pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não é possível entrar -, e Fazenda da Posse (Padre Correya), também tomada e esta sim, aberta à visitação.

Itaipava/Inconfidência

Esta etapa, de aproximadamente 27km, mescla subidas e descidas. Saindo da paisagem urbana de Petrópolis, neste trecho o visual é de zona rural e as passagens da História do Brasil tornam-se cada vez mais fortes, pois o fim da linha é Inconfidência (RJ), cidade que abriga um museu dedicado a Tiradentes. O autor alerta que no local não há infra-estrutura para turistas. “Existe a opção de dormir no coreto ou na porta da igreja”, avisa. Mas Olivé lembra com carinho da hospitalidade dos moradores e aconselha quem não quiser o relento a tentar o pouso na casa de um deles. “Aconteceu comigo, acho que é natural daquelas pessoas serem tão hospitaleiras. É um dos fatos que mais me emocionam em toda a travessia”, recorda.

Mas quem abriria as portas a viajantes a pé? Será que eles são tão bem recebidos como aqueles que viajam em chamativos carros 4×4 cobertos com adesivos, o que está em moda ultimamente? “É preciso lembrar que existe uma diferença entre o caminhante e o andarilho. Este último sempre se apresenta sujo, em farrapos. Já quem viaja a pé é gente de classe A e B, com mais de 30 anos. Está sempre com roupa esportiva, mochila e, mesmo que esteja sujo de lama ou poeira, ainda possui aparência diferente. As pessoas são receptivas, sim”, observa Olivé.

Um descanso na ponte do Paraibuna, nu Dom Pedro pede licença e tem seu momento de simples mortal. Esta é uma das histórias que recheiam estes quatro últimos trechos até Minas.

Inconfidência/Paraíba do Sul

Depois desta última etapa, são aproximadamente 21km até se chegar à primeira pousada, em Paraíba do Sul. No trecho, com bastantes bifurcações, vai-se cruzar o rio Paraíba do Sul por uma ponte. Foi dela que Dom Pedro I escreveu uma carta a José Bonifácio, para avisar que seguia boa viagem. “Meu amigo, nu em pêlo, pego da pena para participar que vamos bem…”, cita Olivé. Segundo o autor, o Príncipe-Regente foi bastante criticado por revelar esta intimidade. Outra curiosidade é que chegavam às margens do rio embarcações que traziam imagens de santo, algumas cheias de ouro, de acordo com a expressão “santo do pau oco”.

Paraíba do Sul/Paraibuna

Olivé afirma que este é o trecho menos habitado de todos, até Juiz de Fora. São cerca de 25 km até a divisa Rio-Minas. Outro perigo: cães de guarda de fazendas. “Sempre foi um dos meus medos por estar a pé, exposto a eles. Mas nunca aconteceu nada”, lembra o autor. O trecho termina com grandes pedras. Pelo caminho, o Museu Rodoviário, montado na antiga estação de troca de cavalos das diligências que trafegavam pela estrada União e Indústria. O rio Paraibuna é um dos últimos pontos e é conhecido como um dos melhores para a prática de esportes na água, como o rafting. Tanto que seu nome significa “rio impraticável, de águas escuras”.

Paraibuna/Matias Barbosa

Hoje é um trecho sossegado. Mas fecha-se os olhos e é possível viajar dois séculos atrás, quando esta era uma região de grande movimento, segundo descreve Olivé: “com dezenas e dezenas de tropas de muares subindo e descendo”. Na etapa, de 26km, é feita a subida do Vale do Rio Paraibuna.

Logo no começo passa-se pelo Registro de Paraibuna, tipo de alfândega interna de antigamente. Foi lá que nasceu o Duque de Caixias, patrono do Exército Brasileiro.

Matias Barbosa/Juiz de Fora

Chegando ao último trecho da viagem, ele reserva 30km de dura subida principalmente até o Santo Antonio – , seguindo em direção ao Alto da Boiada, perto de Juíz de Fora. É visita obrigatória a Capela de Nossa Senhora do Rosário, logo no início do trajeto, assim como a Casa Grande Antigüidades, com arquitetura do século 18, e o Colégio Santos Anjos, onde existia o sobrado da Fazenda Juíz de Fora, que teria sido o berço da cidade.

A estrada continua

Fim da aventura? Não, a Estrada segue até Ouro Preto. “Estamos preparando mais seis guias, o próximo será lançado em abril, acredito”, diz Olivé.

Os mais intrépidos podem pernoitar em Juíz de Fora e seguir de ônibus/carro para Ibitipoca (50km). Chegando lá aposente a máquina e ponha as pernas para funcionar outra vez, curtindo as trilhas do Parque Estadual de Ibitipoca, que levam a cachoeiras de águas geladas e alaranjadas (devido à decomposição da matéria orgânica vegetal), grutas dos mais diversos tamanhos, caminhadas repletas de bromélias e orquídeas e o mais famoso habitante do parque, o lobo-guará.


Fonte de pesquisa: “Guia da Estrada Real para Caminhantes: Rio de Janeiro a Juiz de Fora [Cais dos Mineiros à Fazenda Juíz de Fora]” Olivé, Raphael Belo Horizonte: Ed. Estrada Real, 1999.

Editora Estrada Real (www.editoraestradareal.com.br) e-mail: editreal@gold.com.br / fone (31) 262-2727.

Este texto foi escrito por: Luciana de Oliveira

Last modified: março 9, 2001

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