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Águas da Bocaina

Redação Webventure/ Aventura brasil

Márcio e Fred durante a longa e arriscada descida da segunda queda  de 160 metros. (foto: Justo Alcazar)
Márcio e Fred durante a longa e arriscada descida da segunda queda de 160 metros. (foto: Justo Alcazar)

Medo e fascínio, sonho e realidade. Para os membros da expedição que até então não conheciam a Cachoeira dos Veados, muito ficou explicado. Ao terem a primeira visão da gigantesca tormenta que despenca do alto de um grande penhasco, entranhado na densa Mata Atlântica, logo entenderam o que afugentou todos os aventureiros que desejavam realizar algum trabalho em tais águas.

Somente a maior das quedas, despeja toneladas de água por segundo do topo de um vertiginoso paredão rochoso com mais de 160 metros de altura, criando um cenário mágico e assustador. Anteriormente, todos achavam que as duas quedas visíveis da Cachoeira dos Veados possuíam juntas uns 120 metros. Agora, o novo registro deixa claro, somente a segunda queda possui quase 160 metros e a soma das três principais quedas totaliza aproximadamente 230 metros.

Todos os grupos que ansiavam um maior contato com tal grandiosa beleza natural abandonaram seus planos e retornaram pelo calçamento da histórica Trilha do Ouro da Serra da Bocaina.

Brumas e gargantes de pedra – A imagem de pesadas brumas chocando-se contra gargantas de pedra de tamanhos variados e o barulho ensurdecedor gerado pela grande queda era suficiente para desencorajar qualquer um de nós, porém estávamos bem decididos em nossos planos.

O Centro Excursionista Gravatá realizou um levantamento de alguns quilômetros do rio dos Veados, um feito inédito e almejado ao longo de anos por muitos aventureiros. E esta história está registrada neste Aventura Brasil.

Mergulhado na construção do livro “Um pedaço do paraíso: A Trilha do Ouro da Serra da Bocaina” desde 1997, não demorou para que a Cachoeira dos Veados me seduzisse, fazendo-me bailar por um mar de desejos e esboços de novos projetos.

Com uma área de 1.100 hectares, o Parque Nacional da Serra da Bocaina abrange parte de seis municípios, localizados na divisa dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. A Bocaina começou a ficar mais conhecida de alguns anos para cá devido a Trilha do Ouro, um pitoresco caminho histórico que atualmente se encontra como uma das principais Travessias do Brasil, uma caminhada de pelo menos três dias por uma região de belíssimos recursos naturais.

De um enraizado de trilhas que cortam a serra, o caminho mais conhecido é o que parte da cidade de São José do Barreiro, no denominado Vale Histórico, em direção à Vila Histórica de Mambucaba, localizada no extremo sul do litoral carioca.

Tesouros da Bocaina – E não é por menos que o Parque Nacional da Serra da Bocaina recebe um número maior de visitantes a cada dia. Afinal, possui um valoroso ecossistema; um passado único, que se faz notar através de um valioso patrimônio histórico-arquitetônico; uma cultura forte, comprovada através de uma rica tradição popular, uma excepcional culinária e um artesanato singular; entre vários outros encantos.

No entanto, a principal razão pela qual a maioria dos esportistas e demais amantes da natureza rumam para a Bocaina é pela quantidade e tamanho de suas cachoeiras. É impossível calcular a quantidade de corredeiras, cascatas e enormes quedas existentes nesta serra, grande parte ainda intocada na maior faixa contínua de Mata Atlântica do país. E enquanto não houver estrutura suficiente para receber os visitantes em sua totalidade, o ideal é que se mantenham desta forma, resguardadas pela espessa floresta.

Surge o projeto – Ciente do potencial hídrico da Serra, com um número incontável de cachoeiras em sua maioria inexploradas e de grandes proporções, logo surgiu o interesse de criar um grande projeto na região. Contando com o suporte técnico do C.E.G. (Centro Excursionista Gravatá), surgiu o projeto “Águas da Bocaina”, que tem como principais objetivos a exploração e catalogação de alguns cursos d’água de grande importância para a Serra da Bocaina mas que não possuem maiores registros por se encontrarem em áreas inóspitas. O projeto é dividido em várias etapas e todo o levantamento obtido é doado para órgãos que possam se beneficiar de tais informações, como IBGE, IBAMA, ONGs diversas, etc.

O Centro Excursionista Gravatá é uma entidade sem fins lucrativos que tem como principais metas à preservação do Patrimônio Natural Brasileiro, a conscientização ambiental das comunidades e as atividades de montanha, através da realização de projetos de cunho social, desportivo e exploratório. O grupo sempre visa conciliar suas atividades desportivas com uma objetividade científica em seus projetos, com a constante preocupação de gerar algum fruto que possa ser utilizado por demais pessoas.

Representando o cartão-postal da Trilha do Ouro, as poderosas quedas da Cachoeira dos Veados foram eleitas com unanimidade pelo grupo como a primeira área a ser trabalhada.

Traçamos estratégias com a ajuda de Cartas Topográficas, fotografias distantes e estudos sobre a região. Já com o time formado para a realização da primeira etapa do projeto – um canionismo inédito ao longo de um trecho do rio dos Veados, cruzando suas principais quedas – sabíamos que não bastava apenas formar uma equipe técnica de grande experiência. Precisaríamos encontrar colaboradores que nos ajudassem a superar os gastos e garantir a grande logística necessária.

Suamos a camisa e a sorte colaborou. Conseguimos o apoio de algumas empresas que acreditam no marketing alternativo através dos esportes e dos projetos de pesquisa. Obtivemos o patrocínio da Revista Nez Adventure, principal revista do segmento esportes de aventura no Brasil; da Half Dome, uma das mais conceituadas empresas brasileiras de equipamentos para aventura e da Ocean Pro, representante das marcas Mares e Sea & Sea no Brasil. Com os gastos reduzidos, conseguimos “amarrar” toda a logística para a empreitada e partimos em busca de nosso objetivo, com um bom grupo de 11 pessoas distribuídos em três veículos tracionados.

Chegando lá – A entrada no Parque Nacional de automóvel é restrita apenas a moradores (felizmente, para a prosperidade da região…), portanto, só conseguimos adentrar ao interior da Serra com uma autorização especial do IBAMA. Depois de 3 horas de muito saculejo pela precária estrada de terra que dá acesso ao Parque, alcançamos a Pousada Barreirinha, onde o carismático Tião nos recebeu com muita hospitalidade.

Após um ótimo pernoite, caímos na estrada (eu disse estrada?) um trecho de poucos quilômetros que nos consumiu umas duas horas, atravessando rios, pontilhões um tanto quanto suspeitos feitos com troncos e obstáculos diversos que a erosão criou.

Quando não foi mais possível continuar nos veículos, prosseguimos caminhando através da fascinante Trilha do Ouro. Devido ao grande número de equipamentos de canionismo e mantimentos que levamos para acampar por alguns dias, gastamos quase 2 horas para percorrer uns 3 km de trilha.

Alguns componentes do grupo se encarregaram de erguer o acampamento, enquanto eu, Rodrigo Rebouças, Hugo Shimazu e Súsilei Souza, juntamente com um grupo de apoio, tentamos alcançar a última das principais quedas. Tínhamos pouco tempo neste dia e optamos por começar os trabalhos nesta cachoeira.

Descobrimos um caminho muito acidentado, que nos levou até as proximidades do topo de tal queda. Um curto rapel e uma travessia bastante escorregadia permitiu que eu, Hugo e Justo alcançássemos a borda superior da cachoeira, de aproximadamente 40 metros. Devido à escassez de tempo, Justo retornou pela corda que deixamos fixa, enquanto eu e Hugo nos apressamos para preparar uma base para descida. Fomos obrigados a “chapeletar” (instalar uma proteção fixa na pedra), afinal não encontramos nenhuma possibilidade de montar uma ancoragem em proteções naturais (em árvores, raízes, pontas de pedra, etc), o que mais nos agradaria diante de nossa política de “ocasionar o mínimo de impacto possível”.

Do alto desta queda o visual é inacreditável, com o rio dos Veados escorrendo mata adentro e com a maior das quedas nos demonstrando todo o poderio da Mãe Natureza, a centenas de metros rio acima. Eu e Hugo só conseguimos iniciar a descida bem mais tarde, já sob a fria noite da Bocaina. Com auxílio de nossas lanternas de cabeça, alcançamos um fundo poço de águas gélidas, agitadas e escuras. Hora de descansar…

A maior queda – Pulamos de nossos sacos de dormir no outro dia por volta das 4h30 e, sob um céu muito estrelado, começamos a preparar os equipamentos. A ansiedade nos dominava, afinal, sabíamos que iríamos encontrar dificuldades pela frente. Apenas um morador das proximidades tinha conseguido chegar ao topo da maior queda, por coincidência poucos dias antes.

Eu, Hugo e Rodrigo partimos com as pesadas mochilas rumo ao vale vizinho, que consideramos ser a melhor rota até o topo da cachoeira alguns quilômetros mais longo – mas evitando as traiçoeiras gretas escondidas e os maiores penhascos. Após duas horas de pesada caminhada, com enorme dúvida a respeito da direção correta, chegamos a um braço de rio. Nos equipamos rapidamente e iniciamos a descida em direção ao turbilhão, que insistia em gritar em nossos ouvidos. Encordados, percorremos um belíssimo trecho de rio, através de várias corredeiras, sifões, refluxos e remansos.

Ao alcançar o beiral da grande queda, constatamos que não estávamos no local correto, mas sim, havíamos descoberto uma nova queda na formação da cachoeira dos Veados. Devido ao pouco tempo disponível e a logística estar preparada para a queda maior (agora, segunda queda), tentamos um contato via rádio com a base e retornamos rio acima. E de volta para a floresta…

Depois de alguns engraçados tombos, escoriações diversas e quase pisarmos em algumas amigas rastejantes de forte veneno, conseguimos encontrar o beiral da maior das quedas. Esta cachoeira lembra uma usina hidrelétrica, capaz de arrastar tudo que encontrar pela frente devido a enorme potência de suas águas.

Sem qualquer possibilidade de descer próximo às “águas brancas”, resolvemos montar nossa ancoragem em algumas árvores e raízes ao lado da cachoeira. Só havia um agravante, o tempo. Após uma breve discussão (leia “rasgação de seda”), analisamos que apenas um deveria descer e meus companheiros ofertaram-me a honra da descida. Comecei a descer por uma corda de 100 metros, levando outra de 60m por garantia, afinal, acreditávamos que a queda não tinha mais de 90 metros.

Cheiro de “roubada” no ar – Agora, percebia o tamanho da encrenca: havia várias quinas formadas por cristais muito afiados, capazes de cortar a corda com facilidade. Pior quando meu corpo sucumbia ao vazio em alguns lances negativos, atritando ainda mais a minha “ligação com a vida” nas navalhas naturais.

Comecei a sentir o cheiro das grandes “roubadas” no ar, aumentando ainda mais o meu nível de adrenalina. Olhando para baixo, percebi que a corda de 100m já estava quase acabando, muito antes da base da cachoeira e em direção ao forte turbilhão. Por muita sorte, faltando poucos metros para acabar a corda, encontrei uma estreita e escorregadia fenda que se dirigia até uma árvore na borda da cachoeira, uns 10 metros à minha direita.

Com muita cautela, fiz uma travessia pela fenda, consciente que se escorregasse poderia pendular, provavelmente com conseqüências fatais. Passei a corda por trás da árvore, emendei os outros 60 metros de corda e continuei descendo vagarosamente.

Força da água – A força desta cachoeira é impressionante. Poucos metros antes de encerrar este rapel, uma espécie de forte chuva começou a me atingir em intervalos regulares. Enquanto tentava jogar a ponta da corda para o Marcos, que me aguardava no pedral ao lado, o aguaceiro me chacoalhava muito. Nunca havia passado por isto antes, mesmo com a roupa de borracha, os jatos d´água chegavam a doer. A força da água era tanta que, ao conseguir sair, constatei que mais de 20 centímetros da “alma” da corda saíram para fora da “capa”.

Rodrigo e Hugo tiveram de recolher, com muita dificuldade, os 160 metros de corda e desmontar tudo sozinhos. Na trilha, de volta para o acampamento, descobriram da pior forma o quanto pesa centenas de metros de corda molhada. Quando chegaram, quase no escuro, comemoramos rapidamente e terminamos de desmontar o acampamento. Nosso tempo havia se esgotado.

Ao final da primeira viagem, tínhamos a certeza que deveríamos voltar para o rio dos Veados, para realizar a descida completa de todas as principais quedas da Cachoeira dos Veados (descendo também a primeira queda recém-descoberta) e na ordem certa, da primeira a última.

Pouco mais de um mês depois e retornamos a região. Rodrigo, Hugo, a equipe de filmagem e outros componentes do suporte logístico ficaram impossibilitados de retornar na segunda tentativa, sendo substituídos por Fred Teodoro e Adalberto Seiblitz, também integrantes do C.E.G.

Desta vez, formamos um grupo de apenas seis cabeças, que teriam de se desdobrar em múltiplas funções. Por outro lado, dispúnhamos de mais dias e consegui uma câmera anfíbia Motor Mariner II, da Sea & Sea, perfeita para o projeto e que me pouparia de carregar a minha pesada e limitada “caixa-estanque”, como na viagem passada.

Dia mais frio do ano – Acabamos optando por acampar ao lado da fazenda do “Zé Cândido”, bem mais próxima do início do caminho até o topo. No primeiro dia, apenas montamos acampamento e discutimos estratégias para a investida do dia seguinte.

Com os termômetros marcando temperaturas negativas e até mesmo com direito a geada, madrugamos para trabalhar no dia mais frio do ano. Na íngreme trilha pela mata, seguimos eu, Justo, Fred e Adalberto.

Acabamos alcançando o rio um pouco acima da vez anterior, quando “erramos de queda”. Novamente encordados, deixamo-nos levar pela correnteza, enquanto Justo, que recebeu o título de fotógrafo e cinegrafista, garantia algumas imagens.

Pioneiros – A sensação de estar em um local em que provavelmente ninguém esteve antes é inexplicável. Imaginávamos se algum dia algum índio, ou quem sabe um destemido Bandeirante, haveria palmilhado estas matas. E mesmo que por aqui passaram, com certeza não alcançaram alguns pontos remotos, só acessíveis com modernos equipamentos.

A primeira queda da formação principal da Cachoeira dos Veados apresentou-se bem mais suave do que imaginávamos, comparando-se com as demais quedas. Resumiu-se em uma suave descida de uns 38 metros até uma piscina natural de grandiosa beleza. Em seguida, rumamos em direção ao topo da segunda queda, para prepararmos a descida do dia seguinte.

Dayane assegurou a logística do acampamento, enquanto Susi e Justo rumaram para a base da queda para captar imagens da descida. Ao mesmo tempo, começamos os trabalhos para refazer a longa e arriscada descida de quase 160 metros. Adalberto retornou a queda do dia anterior para recuperar alguns equipamentos utilizados na ancoragem, enquanto eu e Fred instalamos as cordas e nos preparamos para descer.

Final da jornada – Desta vez, desci apenas uns 70 metros para fotografar Fred e retornei corda acima. Achamos que não valia a pena expôr mais um integrante ao risco. Com extremo cuidado e um prazer indescritível, Fred prosseguiu e acabou se deparando com os mesmos problemas que enfrentei na primeira viagem. Alguns mochileiros que percorriam a Trilha do Ouro pararam para apreciar a descida de Fred, uma cena fora do comum na região.

Acabando os trabalhos nas duas maiores quedas e em suas extensões de rio, seguimos para a última das quedas. Estávamos exaustos, carregando com nossas forças restantes todos os equipamentos utilizados (e como pesam as molhadas cordas de 200 metros!).

Uma curta trilha, um rápido rapel e uma escorregadia travessia, e lá estávamos eu, Susi e Adalberto no topo da última queda. Apesar de ser uma pequena queda, a descida não deixa de ser emocionante, pois o poderio da grande cachoeira dos Veados é imenso e está sempre presente através do enorme e ininterrupto estrondo e do incomparável espetáculo de suas poderosas quedas.

Adalberto foi o primeiro a descer, com enorme felicidade por estar finalizando esta conquista. Diante de um cenário inacreditável, Susi, com grande emoção, desceu corda abaixo, enquanto Justo fazia sua segurança. Assisti as descidas de camarote, com uma enorme satisfação por estar em um local tão especial e por poder contar com a força de alguns competentes amigos. Logo, parti com orgulho em busca de meus grandes companheiros.

Agora, lembranças – Dever cumprido, à noite a fogueira foi cúmplice de nossos sonhos. No dia seguinte, com a ajuda de um animal de carga, retornamos aos nossos veículos e rumamos até a pousada do Tião, onde um saboroso almoço feito em fogão à lenha nos aguardava.

Para o grupo, nada melhor do que comer uma deliciosa comida caseira, na companhia de ótimos amigos, com as lembranças de nosso sonho realizado, que nos acompanhará pelo resto de nossas vidas… a primeira etapa do projeto Águas da Bocaina, a exploração da formação principal da Cachoeira dos Veados.

Esta expedição foi uma realização do Centro Excursionista Gravatá (fone 11 3673-7137 / centrogravata@hotmail.com). Patrocínio: Half Dome equipamentos para aventura (11 5052-8082 / info@halfdome.com.br; Mares a marca do Canyoning (11 5562-6022) e Revista Nez Adventure (11 5181-3161 / tribal@uol.com.br). Apoio: By roupas esportivas e IBAMA São José do Barreiro.

Esta matéria foi produzida nos meses de abril e maio do ano de 1999, representando apenas uma etapa do projeto Águas da Bocaina.

Sobre o PN Serra da Bocaina:
Onde ficar
– Pousada Barreirinha (fone 12 577-1235, com Tião);
– Pousada do Conde – (12 544-3868, com Luciano);

Autorização
Para entrar no Parque Nacional da Serra da Bocaina é preciso solicitar uma autorização previamente no IBAMA de São José do Barreiro. Fone: (12) 577-1225, com Álvaro.

Este texto foi escrito por: Márcio Bortolusso

Last modified: maio 24, 2002

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Redação Webventure
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