Foto: Pixabay

Guy Marcovaldi fala do Projeto Tamar

Redação Webventure/ Aventura brasil

Tamar já liberou 350 mil filhotes (foto: Projeto Tamar)
Tamar já liberou 350 mil filhotes (foto: Projeto Tamar)

Há 20 anos, ele é o guardião das tartarugas marinhas do Brasil. Mais que isso, Guy Marcovaldi, pioneiro no projeto Tamar, tem a vida que pediu a Deus: praia, muitos mergulhos, contato direto com a vasta fauna submarina das águas brasileiras. “Não é bem assim”, lembra o oceanógrafo. “Hoje o Tamar cresceu, são 400 funcionários, 21 bases e alguma burocracia. Entro no escritório e não me sinto mais como há vinte anos”, comenta, rindo, sobre a base do projeto, na praia do Forte, na Bahia. “Mas certamente o sentimento é o mesmo quando estou no mar.”

Foi na década de 70 que Marcovaldi, nascido no Rio de Janeiro, e outros colegas de faculdade descobriram o quanto era necessário fazer da paixão, o mergulho, uma missão. Foi nas profundezas do Atol das Rocas que eles encontraram pela primeira vez tartarugas gigantescas, de 200 quilos. E, de volta à terra firme, viram várias delas viradas na areia, algumas já sendo mortas pelos pescadores. “Foi a cena mais triste que vi até hoje”, lembra Guy. Daí em diante, ele rodou o litoral brasileiro para conhecer as tartarugas, seu habitat e criou a amizade que fez com que, nos dois últimos anos, 350 mil filhotes fossem liberados pela ação do Tamar, contra 50 mil no início do projeto.

A luta pela preservação também abre espaço para muita aventura: são noites perambulando por praias desertas, carro atolado com a subida da maré e, claro, mergulhos profundos, descobertas de naufrágios, encontros com tubarões e outras histórias, que Marcovaldi compartilha nesta entrevista para o Aventura Brasil.

Webventure – Como nasceu o Tamar?

Guy Marcovaldi – Quando eu estava fazendo faculdade de oceanografia, organizávamos várias viagens para lugares diferentes, onde íamos mergulhar. Foi numa dessas, ao Atol das Rocas, que vimos pescadores matando várias tartarugas. Isso foi levado a pessoas que trabalhavam no Ibama na época e havia a intenção de se criar um programa de conservação marinha para o Brasil. Na época, década de 70, não havia nada. Fomos convidados a participar desse projeto que tinha como objetivos ver a situação e os problemas relativos às tartarugas marinhas, peixes-bois e baleias, além de implantar parques e reservas biológicas. Saí para fazer um levantamento de dois anos, do Oiapoque ao Chuí, praia por praia, ilha por ilha, para fazer um diagnóstico da costa. Depois, em 1980, fui escolhido para cuidar das tartarugas marinhas. Em 82, o Tamar começou a protegê-las nas praias.

Webventure – Neste levantamento por dois anos, viajando pelo litoral, você deve ter conhecidos pontos sensacionais para o mergulho…

Marcovaldi – Desde a faculdade já viajava mas, com o projeto, tive a oportunidade de ir mais longe e mais fundo. Um dos privilégios foi mergulhar no Atol, identificando moluscos, peixes, fotografando e filmando o fundo do mar. Mas recentemente tive uma experiência incrível que foi mergulhar em navios naufragados em Pernambuco (Pirapama), que as tartarugas usam como dormitórios.

Webventure – Era mais difícil realizar esses mergulhos vinte anos atrás?

Marcovaldi – Havia mais dificuldades, principalmente na logística. Fazíamos caminhadas de dois dias pelas praias, em lugares ermos, às vezes usando cavalo, às vezes só a nado… Mas o bom é que não tinha tantas obrigações. Hoje o Tamar tem 400 funcionários a responsabilidade é maior, muita gente depende do sucesso do projeto. Antes a contabilidade cabia num caderninho de um dedo de grossura. Hoje tem advogado, secretária…

Webventure – Isso tira o seu prazer?

Marcovaldi – Sempre tira, né? Quando eu entro no escritório hoje o sentimento não é o mesmo do começo. Mas quando estou no mar, é sempre uma grande emoção.

Webventure – Quando você começou a mergulhar?

Marcovaldi – Sempre fui o que chamam de viciado em mergulho. Desde os oito anos, no Rio, eu mergulhava lá na praia vermelha pra pescar siris (risos) e fazer foto submarina, com uma câmera antiga. Hoje o equipamento facilita muito, tenho câmera digital que chega a até 100m de profundidade, faz foto e vídeo…

Webventure – Quais os lugares mais impressionantes em que você já mergulhou?

Marcovaldi – Recentemente estive com meu irmão Enrico Marcovaldi, na Borda do Talude Continental, na Bahia. É aquele paredão, onde subitamente o oceano se torna mais fundo. Outro lugar inesquecível, também recente, foram os naufrágios de Pernambuco. E também gosto de mergulhar das plataformas de petróleo.

Webventure – Nos mergulhos feitos pelo projeto quais são os objetivos?

Marcovaldi – São dois: encontrar tartarugas, marcar, medir e, se possível, extrair material genético para o banco científico; e captar material para o nosso banco de imagens. Recentemente iniciamos a captura de peixes para os aquários que serão criados.

Webventure – Qual a freqüência desses mergulhos e quantas pessoas participam?

Marcovaldi – São feitos semanalmente nas bases aqui do Forte, em Fernando de Noronha – onde realizam apnéia – , Sergipe e em Ubatuba. Geralmente vão de duas a três pessoas entre biólogos, oceanógrafos e cinegrafistas. O difícil é encontrar quem não enjoe no mar. 90% das pessoas enjoam, já perdi muita gente com potencial mas que não suportava ir para o mar. Muitos têm de ser encaixados em ações em terra.

Webventure – Como é o relacionamento de vocês com as tartarugas no mar?

Marcovaldi – Estou cada vez mais supresos por encontrá-las tão mansas em profundidades maiores. Elas se alimentam normalmente, vêm ao nosso encontro… Algumas pesam 200, 300 quilos. A primeira vez que vi uma dessas foi no Atol das Rocas, naquela vez em que vimos serem mortas. É uma grande surpresa porque quando se fala em tartaruga você imagina um bicho do tamanho de um gato, mas no mar elas estão mais proporcionais a cavalos (risos).

Webventure – Vocês costumam encontrar tubarões?

Marcovaldi – É rotina… Eles não fazem nada, são peixes como os outros, só um pouco maiores. Não são nada daquilo que o Spielberg mostrou.

Webventure – Quais são os riscos nesses mergulhos mais profundos? Você já teve algum tipo de problema?

Marcovaldi – Os mergulhos técnicos, em profundidade maior que 50 metros, são os mais arriscados. Hoje em dia mergulhamos com computadores que indicam o tempo em que você está na água, tempo de descompressão. Nunca tive problemas, mas já vi colegas com início de narcose, tendo que voltar à superfície porque a garrafa de oxigênio estava estragada. O que já aconteceu foi a gente se perder no Atol, incêndio no barco…

Webventure – Vocês andam muito pelas praias. Que tipo de atividades acontecem ali?

Marcovaldi – Temos mais pessoas nas praias do que no mar. É a nossa principal fonte de dados. Na época da desova, entre setembro e fevereiro, temos 250 pessoas envolvidas nessa rotina. Cobrimos ao todo mil quilômetros de praia. A cada 6km temos um pescador responsável, para cada três pescadores um estagiário e, para cada três estagiários, um biólogo.

Webventure – Então os pescadores também ajudam na preservação?

Marcovaldi – Sim. A gente vai até as vilas e descobre as lideranças, quem pega mais peixe, e convidamos para trabalhar conosco. O impacto do projeto nas vilas é grande, há mil moradores e 100 trabalham no Tamar. A função principal deles é produzir souvenirs para a venda nas nossas lojas. A nossa renda vem do Ibama, da Petrobrás e do comércio desses produtos. Outros pescadores, mais ou menos 200 ao todo, patrulham as praias. Eles andam por elas e verificam a desova, tartaruga que subiu mas não desovou, se o ninho está caindo e as tartarugas vão nascer logo… Nada passa despercebido por eles, nasceram e cresceram naqueles lugares.

Webventure – E nas patrulhas que você já fez pelas praias, passou por algum apuro, alguma situação extrema?

Marcovaldi – Já encontramos um corpo na praia… Mas o pior que acontece é ter problema com o carro, atolar, a maré subir, invadir o carro… já perdemos um veículo por causa disso. Mas o que faz o coração disparar é ver uma tartaruga, dessas grandes, subindo para desovar. Ver uma tartaruga de couro, com seus 600, 700kg desovando é fantástico.

Webventure – Após os 20 anos, o que ainda falta para o Tamar?

Marcovaldi – Durante cinco séculos matou-se tartarugas. Os navios portugueses queriam carne fresca para levar para a Europa. O Tamar teve 20 anos para lutar contra esses 480 anos de exploração. Falta ter o trabalho instalado, consolidar as nossas bases. Todo o trabalho com a natureza é sacrificado, cheio de burocracia.

Webventure – Quais são os próximos projetos?

Marcovaldi – Estamos consolidando os centros de visitantes, caminhando para a educação com lazer. Em Aracaju, por exemplo, estamos montando um oceanário que vai ser o que existe de mais legal no Brasil em termos de aquário ( são de 117 mil m2, na praia da Atalaia, com 21 aquários). Os centros da Praia do Forte e de Ubatuba também estão cheios de novidades.

Webventure – E você? Tem algum mergulho que ainda sonha em fazer?

Marcovaldi – Ainda não fui ao arquipélago de São Pedro e São Paulo, quero explorar pontos mais profundos do nosso litoral.

Webventure – Qual o conselho para quem estiver mergulhado por aí e encontrar uma tartaruga marinha?

Marcovaldi – Eu deveria dizer não toque nem se aproxime muito para não molestá-la. Mas chegar perto e até tocar faz com que cresça o sentimento de gostar daquele animal. Ela pode até se incomodar, mas para a espécie é bom. Mas só faça aquilo que ela quiser. Agora se vir alguém matando ou prendendo tartarugas chame a polícia, quem puder… só não deixe passar batido.

Para conhecer mais sobre o Projeto Tamar e saber como contribuir, visite o site www.tamar.org.br

Este texto foi escrito por: Luciana de Oliveira

Last modified: dezembro 15, 2000

[fbcomments]
Redação Webventure
Redação Webventure