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Fantozzi conta como motos entraram na terra

Redação Webventure/ Aventura brasil

Jean Azevedo  o melhor piloto brasileiro no momento; pilotos precisam ganhar experiência lá fora. (foto: André Pascowitch)
Jean Azevedo o melhor piloto brasileiro no momento; pilotos precisam ganhar experiência lá fora. (foto: André Pascowitch)

Acordar cedo. Vestir uma roupa pesada com bota, calça, camisa, colete (proteção peitoral), luva e capacete. Subir em uma moto e passar o dia inteiro embrenhado no meio da mata, por uma trilha estreita e fechada. Acelerar até o talo para conseguir vencer o barro, a lama, as travessias de riachos, as subidas escorregadias, enfim, o que vier pela frente. E só voltar para casa com o sol já posto em recanto.

Milhares de pilotos, de várias regiões do país, cumprem esta rotina todos os fins de semana. Eles se reúnem em pequenos grupos para praticar o trail, uma das modalidades mais antigas do off-road.

O início – No Brasil, o esporte surgiu início dos anos 70. “A gente pegava uma revista de fora, via que os pilotos andavam na terra, subiam em terra. Aí começamos a brincar também”, recorda Décio Fantozzi, atual presidente da Federação Paulista de Motociclismo. Antes disso, as provas se retringiam apenas aos circuitos fechados (com saltos) do motocross e supercross.

Décio e o amigo Carlos Coacham, conhecido como Carlão, foram os responsáveis pela introdução do trail na capital paulista. “Eu comecei a fazer trilha sozinho. Alguns anos depois, eu conheci o Décio e começamos a fazer alguns passeios juntos”, explicou Carlão. “A gente começou a andar em 1972/73, quando compramos duas motos de trial (leve; específica para manobras). Na época, não existia nada de trail em São Paulo”, completou Décio.

Trilha na veia – Outro grande centro fundador do esporte foi Belo Horizonte, Minas Gerais. Segundo Helvécio Ribeiro, atual presidente do Trail Clube Minas Gerais (TCMG), o primeiro motoclube off-road do Brasil, “o trail aqui surgiu em 1974, quando uma galera resolveu usar as montanhas de forma diferente”.

Tanto em Minas como em São Paulo, o trail ganhou força e novos adeptos. Amigos se encontravam cada vez mais para andar e era apenas uma questão de tempo para que o esporte explodisse no mercado. “O Carlão começou a conhecer bastante gente que tinha espírito de trilha na veia. Eram todos amigos. A gente juntava aquele ‘puta’ bando e fazia trail todo final de semana”, contou Décio. É com esta turma que o Aventura Brasil acelera para contar a história do trail.

No início dos anos 80, com o crescimento no número de praticantes e com as principais fábricas produzindo motos para trilha (tipo Yamaha DT e Honda XL), cria-se, em Minas Gerais, a idéia inédita de uma competição entre pilotos aliada ao prazer do trail.

A diretoria do Trail Clube de Minas Gerais – TCMG, comandada naquele tempo por Ayres Marcarenhas, organizou então um enduro de regularidade com os mesmos conceitos utilizados do rali de regularidade para carros, em que os pilotos devem manter as médias horárias e de velocidade em cima de um roteiro planilhado. “Os mineiros inventaram uma prova que não tinha em lugar algum. É uma prova bem tupiniquim, bem brasileira”, afirmou Décio.

Em 1982, uma iniciativa pioneira do TCMG e da Rede Globo originou a primeira grande prova do Brasil, o Enduro da Independência. Na edição de estréia, realizada nas trilhas aos redores de Belo Horizonte, participaram cerca de 1.000 pilotos. Hoje, com percurso entre o Rio e BH, é chamada de Independência Off-Road e considerada a maior prova da modalidade no mundo.

Batman e Robin – Em São Paulo, novamente a dupla Décio e Carlão ficou encumbida da missão. “A Federação queria organizar um enduro. Nós fomos lá conversar com o presidente (Wilson Abdala Mansur). Ele começou a explicar o que queria e eu disse: o que você quer fazer não é enduro. Ele então perguntou como seria um. Comecei a explicar e ele disse: você conhece tanto, por que não organiza um?”, detalhou Carlão.

A convite da Federação Paulista, que pagou passagem e estadia, Carlão foi a Belo Horizonte para adquirir know-how. “Fui super bem recebido pelo pessoal e pude acompanhar o Enduro da Chuva”.

Ainda sem o consentimento da Federação Paulista de Motociclismo, Décio e Carlão organizaram muitas provas, como o Enduro do Verde, em 1980. Depois da fundação do Trail Clube Pauslista (inativo hoje), em 1982, vieram o Enduro do Tic-Tac, Enduro da Palma da Mão e o Enduro Tropeiro, de São Paulo a Sorocaba, e o Enduro das Montanhas, região de Campos do Jordão, hoje a prova mais importante do estado. Em 1985, foi a vez do Enduro da Mentira, o primeiro realizado na região do Alphaville e com a participação de mais de 100 pilotos.

Piratas – A partir de 1985, a Federação descobriu o potencial do esporte e decidiu cobrar uma taxa de filiação junto aos pilotos. Muitos não gostaram da atitude e deixaram de contribuir com a entidade. Com isso, os pilotos não-filiados organizavam as próprias competições. “Teve um enduro que ficou famoso por um bom tempo. Foi o Enduro do Pirata. Era uma represália à Federação e não podia participar pilotos filiados”, lembrou Décio.

No período de seguinte, de 1990 à 1995, com a abertura da importação no governo Fernando Collor, o trail oscilou entre a expansão e a estagnação. Expansão porque o mercado recebeu um impulso com a vinda de motos estrangeiras, aumentando mais o número de praticantes. Porém, houve estagnação porque muitos pilotos perderam o interesse pela modalidade e pelos enduros de regularidade.

Até o Independência sofreu com a mudança. A prova, que antes tinha mais de 500 inscrições, naquela época passou a receber apenas 200. Segundo Décio, “o mercado cresceu muito quando o Collor abriu a importação e aí vieram outros tipos de provas. Os pilotos, principalmente os paulistas, perderam a vontade de fazer enduros de regularidade”.

A Federação Paulista de Motociclismo trouxe de fora novas competições, como o Enduro FIM, no padrão de disputa da Federação Internacional de Motociclismo (circuito fechado com especiais cronometradas de 4km), e o Cross Country (circuito fechado de 10 a 20 km com obstáculos naturais). Ambas proporcionam uma aceleração maior durante as competições, rompendo com a velha regularidade da prova brasileira.

O enduro tem sotaque- A verdade é que o motociclismo off-road nunca mais foi o mesmo. Em todos os estados brasileiros há competições totalmente diferentes. A partir de 1998, o Independência Off-Road voltou a ter um incremento na quantidade de pilotos. Por outro lado, em São Paulo, a velocidade tomou conta. “O problema é que o enduro tem sotaque. No sul é completamente diferente do que é feito lá no nordeste, aqui e em Minas”, comentou Décio.

Mesmo com tamanha transformação, o trail permence vivo. Existem fiéis que não disputam competições e continuam se aventurando nas trilhas. “Eu sou um deles. Particularmente, não gostou de competir”, opiniou Carlão. Já Décio destacou que “até hoje tem um grupo de amigos que sai, aos sábados, para andar de moto por pura curtição”.

O motociclismo off-road de hoje não se resume ao trail de quase trinta anos atrás. O calendário nacional está repleto de eventos. Não há sequer um fim de semana sem um enduro de regularidade ou de velocidade. “No Brasil inteiro se pratica enduro”, confirmou Décio.

Apesar do aparecimento de bons pilotos, como os paulistas Jean Azevedo, Juca Bala e José Hélio Filho, o mineiro Luiz Felipe Braga, o catarinense Dário Schrull, entre outros, o esporte ainda não está no mesmo nível que os países da Europa e os EUA. “É um hobby, é amador. A meninada anda bem porque tem um pai que sustenta, mas fazer carreira como lá fora é complicado”, explicou Décio.

Na cola – Segundo ele, os pilotos brasileiros estão se aproximando dos melhores. “Temos pilotos hoje que se correrem lá fora é claro que não vão ganhar, mas não vão ser qualquer ‘mané’ que vai chegar por último”.

O trail foi a primeira acelerada e o futuro promete ainda ser mais promissor. “Temos de olhar o que acontece lá fora. Precisamos aprender. Já estivemos anos-luz atrás e agora estamos bem perto deles. Temos bons pilotos, motos e equipamentos. É questão de tempo”, finalizou.

Este texto foi escrito por: André Pascowitch

Last modified: outubro 6, 2000

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