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A volta pelo mundo de Moss – parte 2

Redação Webventure/ Aventura brasil

Nesta segunda parte  o Ximango vai ao Oriente  África  Europa e volta à América (foto: Arquivo Asas do Vento)
Nesta segunda parte o Ximango vai ao Oriente África Europa e volta à América (foto: Arquivo Asas do Vento)

Nesta segunda e última parte da reportagem sobre a volta ao mundo de Gerárd Moss, o piloto e seu motoplanador Ximango vivem situações, senão de sonho, de puro privilégio. Sobrevoar o Paquistão e o centro de Londres um dia antes de o mundo entrar em paranóia pela ação dos terroristas, dar rasantes no Nilo ao nascer do dia e curtir o pôr-do-sol na chegada a Fernando de Noronha… Há emoções à escolha.

Nem por isso restam apenas episódios de pura felicidade. Continuam as desventuras nas alfândegas, desta vez em países africanos, e o mau tempo custou a dar trégua.

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Quando Gerárd Moss chegou ao Oriente Médio, havia passado por uma fase complicada na viagem. Na Ásia, problemas com a burocracia e a segurança de alguns países – incluindo a interceptação por caças japoneses e a detenção no Vietnã – tinham se juntado a condições de tempo ruins, que o impediram de usar o piloto automático durante os vôos, alguns com duração de oito, nove horas.

O que viria pela frente? Tendo de cruzar países miseráveis e em alguns em constante estado de alerta por causa de conflitos internos, não era de se imaginar que um ‘passeio’ esperasse por Moss.

Continuando a registrar a expedição para TV e Internet, o aviador esbarrou num certo problema ao chegar à antiga Birmânia: lá não há liberdade de navegar pela web. “Por decisão do governo, não há Internet em Myanmar (antiga Birmânia)! Estou usando o computador do hotel conectado a um sistema chamado Intranet, através do único provedor no país: o Governo!”. Outras curiosidades não passaram despercebidas. Lá, não se aceita dólar: “Tudo deve ser pago em FECs, ‘Foreign Exchange Certificates’ certificados de câmbio.”

O mau tempo persistia e Moss conquistou a simpatia dos operadores do aeroporto e ouviu mensagens como “Rezo por você todos os dias para que o tempo melhore.”

No berço do terror – O Paquistão foi cruzado em 22 de agosto, quando o ataque terrorista – que abalou os EUA e fez deste vizinho do Afeganistão um ponto estratégico na guerra – estava apenas na idéia de seus autores. Mesmo assim, não foi simples passar por lá. “A viagem para Mascate (em Omã) não só foi um longo vôo, mas também uma longa briga com os controladores.”

“Meu plano de vôo mostrava uma rota pela aerovia G472, mais ou menos diretamente para Mascate, mas o controle de Karachi (Paquistão) decidiu que deveria mudá-lo”, conta Moss. “Não adiantavam nada os argumentos que eu apresentava sobre meu plano de vôo visual, já devidamente aceito e assinado, ou que eu não tinha gasolina suficiente para fazer desvios completamente desnecessários (…) Fui obrigado a aceitar as instruções, desviando 30 graus para aproar na cidade de Karachi.”

Mas a experiência compensou. “Foi a primeira vez há muito que estava voando com tempo bom. Um céu sem nuvens por todo o caminho. Porém, o Paquistão estava totalmente escondido por uma bruma seca com partículas de areia fina”, descreveu o piloto. “Fiquei 8 horas com meus olhos grudados no horizonte artificial, no rumo e no GPS. Cada vez que olhava o mapa, ou marcava a freqüência, ou comia uma barra de cereal, o avião saía 40 graus da rota em questão de segundos.”.

O cansaço dos longos vôos passou a assustar Gerárd dali para frente. Um imprevisto na Arábia fez com que batesse mais um recorde de duração de vôo, com 2.170 km. Entre Mascate e Djibuti, o piloto não teve aprovação para pousar na Arábia. Teve de fazer um grande desvio, o que já era para se comemorar porque a manobra só foi possível com a ação rápida e ‘miraculosa’ da equipe que estava no Brasil. Em 24 horas, eles conseguiram autorizações de vôo em outros cinco países: Iêmen, Djibuti, Etiópia, Eritréia e Sudão.

“Foi exaustivo. Após 3 horas de vôo, meus olhos ardiam devido ao estresse de passar constantemente de um instrumento a outro e tentar focalizar neles. Tive de corrigir o rumo e a altitude a cada 2 segundos, ou seja 360 vezes por hora. Estava enlouquecendo”, recorda Moss. “Fechei os olhos por alguns segundos e os deixei descansar. Tinha completado apenas um terço do vôo. Tive sérias dúvidas se iria conseguir manter esse ritmo por mais 8 ou 9 horas. Às vezes, me dava um branco: ‘pra que lado devo virar o avião?'”

O conforto de ver o Nilo – No Egito, o esgotamento já era perigoso. “O maior problema foram meus olhos: eles queriam fechar o tempo todo. Foi dificílimo não cair no sono, o pior ataque de vontade de dormir que já tive na minha vida”, confessa. Mais uma vez a paisagem trouxe conforto ao aviador. Numa espécie de vôo dos sonhos, ele passou pelos cenários históricos desta civilização, com direito a rasantes no Nilo, contemplado ao nascer do sol.

Pela frente, havia a fase européia desta volta ao mundo.

Da África, Moss chegou à Grécia, em setembro. Mudança geral: o brasileiro estaria agora sobre países do chamado primeiro mundo. “Na Grécia, fui obrigado a voar sempre nas aerovias. Agora, em outros países da Europa, posso passear à vontade e fazer uns vôos planados novamente”, destacou, ansioso por ‘cortar’ o motor depois de tanto tempo.

A parada na Suíça era lei – afinal, foi neste país que cresceu o inglês Gerárd, que, mais tarde, adotaria o Brasil como pátria. Sua mãe ainda mora lá. No diário de bordo, como criança, ele assumiu a alegria de estar em família, contando ainda com uma visita especial. “Foi uma benção, já que pude finalmente descansar um pouco – estava precisando – e aproveitar a boa comida da minha mãe. Vocês me desculpem se não escrevi nada antes, mas tive outra distração: Margi veio me fazer uma visita. Há dois meses que a gente não se vê: fiquei meio ocupado com outras coisas.”

Mais surpresas aconteceram. Na cidade de Gstaad, Moss encontrou-se com Bertrand Piccard. Ao lado de Brian Jones, ele realizou o último grande feito da aviação, completando a volta ao mundo em balão.

Na França, outro encontro marcante, com René Fournier, que, ainda nos anos 60, inventou o conceito de motoplanadores e projetou o Ximango. Numa frase Moss consegue passar a importância de um nome ainda pouco conhecido da maioria: “Leonardo da Vinci e René Fournier estão separados por quatro séculos, mas unidos pela visão futurista, cada um em seu campo”.

Último sobrevôo em Londres – O encerramento da fase européia foi também em grande estilo, com um daqueles fatos que só acontecem em filme. Exatamente no dia 10 de setembro, véspera do ataque aos EUA, que detonou pânico em todo o mundo, o piloto teve o privilégio de sobrevoar o centro de Londres. No dia seguinte, como efeito da tragédia americana, a aeronáutica inglesa proibiu para sempre que aviões passassem por esta região.

Moss voltou à África, passando por Dakar e depois Cabo Verde, de onde partiria para a América. No sobrevôo à cidade que é ponto final do rali mais famoso do mundo, o Paris-Dakar, o visual de uma história no deserto: “centenas de quilômetros de uma costa intocada sobre um céu maravilhosamente claro. Aldeias de pescadores, acampamentos dos Touareg com suas cabras e camelos, cavalos selvagens, flamingos cor de rosa, faróis abandonados, navios naufragados, praias de areias brancas, pântanos e dunas de areia. (…) Me senti num tapete voador!”

Cada vez mais, Moss estava perto de casa e da conclusão da histórica volta ao mundo. Antes de comemorar, porém, restava uma difícil missão: atravessar o oceano Atlântico, de volta à América, partindo de Praia, em Cabo Verde. “Em linha reta, a distância é de 1.242 milhas (2.315 km). Adicionando 5% para desviar de tempestades, ficou um total de 1.305 milhas (2.420 km)”.

Diversos problemas envolviam a questão. Ter combustível suficiente era um deles, mas o Ximango teve a capacidade dos tanques aumentada. A luz era outro desafio: “O sol ia se levantar às 07h23 GMT (06h23 hora local) e se pôr em Noronha às 20h06 GMT (18h06 local). Teria 13 horas de luz pra voar”, explica Moss. “Necessariamente faria alguma parte do vôo na escuridão.”

Antes partir, Gerárd soube que a meteorologia indicava “uma depressão tropical em formação, na posição Rakud, com ventos estimados em 50 nós (90 km/h) de 130 graus. Antes de embarcar nesse vôo, sabia que teria de enfrentar algumas tempestades – mas não uma depressão tropical, daquelas em que nascem furacões!”

Sem volta – Era uma decisão complexa. A posição Rakud estava num ponto em que não era possível retornar ao local de partida. “Eu tinha me preparado para encarar o mau tempo bem cedo no vôo, quando ainda havia a possibilidade de voltar, e não mais longe onde, se não desse para passar, cairia no mar.”

A equipe, no Rio, buscava mais detalhes sobre o fenômeno. Veio a informação de que não era uma depressão, mas uma onda tropical, típica da zona de convergência intertropical. “Então, fui em frente: ‘Brasil, estou chegando!’ Estava resolvido a encarar o que viesse.”

Cortina escura – Às 10h45 GMT, Moss passou do ponto em que não havia mais retorno. Pouco tempo depois, veio a primeira batalha, com nuvens muito baixas e chuva. “Quando a velocidade caiu para 85 nós e comecei a queimar muito combustível, resolvi desafiar o monstro cara a cara. Desci de 2.000 pés de altitude até uns 100 pés, reduzi a velocidade para melhor lidar com a turbulência, apertei bem o cinto, guardei todas as câmeras e equipamento solto e me preparei para o pior.”

A senha para se orientar melhor era manter contato com as ondas do mar, já que o piloto estava a apenas cinco ou dez metros delas. “De repente, não vi mais as ondas. Sem vacilar, comecei uma curva de 180 graus e subi alguns metros. Foi o momento mais perigoso. Ao fazer uma curva muito inclinada, há risco de estolar*, além de tocar na água com uma das imensas asas.” A perícia do piloto o livrou de maiores problemas.

Ufa! Céu azul… – Para continuar de olho no tempo, a equipe em terra descobriu que um site da NASA trazia imagens de satélite atualizadas a cada meia hora, em vez das habituais seis horas dos outros sites meteorológicos. “Encarei outro bloco de mau tempo, mas passei ‘facilmente’, voando a 300 pés. Depois disso, saí de repente debaixo de um céu azul e assim foi durante o resto da travessia.”

Às 17h30, os tanques adicionais do motoplanador já estavam vazios, mas faltavam apenas duas horas para chegar a Fernando de Noronha (PE). “Quando por fim surgiu o pico de Noronha no horizonte, não há palavras para descrever meu alívio e minha felicidade. Declaro agora que esta ilha é a minha preferida de todas!”


*****
(*) Estol = Redução da velocidade relativa ao ar de um avião, a ponto de o fazer cair, por ser o seu peso maior que a força de sustentação das asas.

Brasil, finalmente! Gerárd resolveu pernoitar em Fernando de Noronha. Chega de passar apuros. Nem tanto: “pela primeira vez em 100 dias e 30 países, tive de tirar minha mala e colocar cuecas e meias na asa para serem inspecionadas”, lembra o piloto, vistoriado no aeroporto de Guararapes, em Recife (PE). “Como se eu tivesse espaço ou cabeça para estar trazendo muamba!”

“Ao decolar de Recife, acompanhei a costa – praias idílicas, areia branca, mar verde, quilômetros de coqueiros. Estava muito à vontade, a 1.000 pés de altitude, sobrevoando a região que já conheço bem”, descreve o aviador. Uma e outra decepções apareceram ainda, como a vista de uma imensa queimada ao sul de Vitória da Conquista, na Bahia. “O que me deu mais raiva foi constatar que as queimadas eram propositais, dentro de quadrados demarcados onde a selva foi derrubada e posta em chamas.”

Rodinhas no chão – Uma frente fria ainda tentou atrapalhar, obrigando Moss a pousar em Linhares, no Espírito Santo, onde a população o recebeu com festa. No dia seguinte, o teto para o Rio se levantou e ele fez o sobrevôo de Búzios, passou por Maricá e ganhou a companhia de amigos voando em ultraleves. “Por fim coloquei as rodas no asfalto. Querida, cheguei!” Era 28 de setembro.

Já faz pouco mais de um mês que o Ximango pousou de sua volta ao mundo, mas o intrépido piloto não agüentou lhe dar descanso e já voou com o histórico motoplanador a São Paulo, onde o apresentou aos fãs durante a Adventure Sports Fair. Grato e bem modesto, Moss credita o sucesso da aventura à máquina que o acompanhou pelos céus do planeta em 100 dias no ar: “não sou eu que sou bom, o avião é que é”. E deixa no ar, num mistério, se a afinada dupla com o Ximango um dia será reeditada.

O Webventure teve a honra de ser parceiro de Moss e do projeto Asas do Vento viabilizando o site oficial da expedição. Confira o diário de bordo, outras fotos, áudios e vídeos acessando www.asasdovento.com.br. O Asas do Vento teve patrocínio de Embratel, Victorinox, Grupo Aeromot e Banco de Santos.

Este texto foi escrito por: Luciana de Oliveira

Last modified: novembro 1, 2001

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