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Um ultraleve na Amazônia

Redação Webventure/ Voo Livre

U-4175 em vôo. (foto: Arquivo pessoal)
U-4175 em vôo. (foto: Arquivo pessoal)

Este “Minha Aventura” traz um relato de um aviador aventureiro que a bordo de um ultraleve fez o trajeto Rio-Manaus-Rio. Muitos imprevistos aconteceram pelo caminho, mas a vontade de vencer o desafio o levou até o final.

Após 47 horas de vôo e 45 escalas a bordo de um ultraleve, num período de 26 dias (inclusos os nove em que fiquei “de castigo”, por causa de um acidente), eu um engenheiro civil, carioca de 41 anos, não contive as lágrimas quando no dia 10 de agosto de 1997 pude falar na fonia, com o Controle Manaus. Estava no Aeroclube do Amazonas, no bairro de Flores, já na capital do estado, mas esse ainda não era o meu objetivo final. O término do meu sonho seria a Base Aérea de Ponta Pelada, a qual só obtive a autorização para o dia 13/08/97, casualmente o dia do meu aniversário.

Sou filho de militar da Aeronáutica (aviador) e, por isso, não escolhi Manaus (Ponta Pelada) como objetivo, por acaso. Quando pequeno lembro que meu pai, ao retornar de suas missões no Correio Aéreo Nacional (CAN), sempre contava suas experiências vividas. E isto sempre me fascinava, até que um dia, com 11 ou 12 anos, tive a oportunidade de acompanhá-lo numa dessas viagens e justamente a da capital amazonense, pelo Alto Xingu.

Foi então que um dia, a pouco menos de cinco anos, um amigo, em Montes Claros(MG) convidou-me para voar de Ultraleve. Meus olhos brilharam. Fomos ao pátio onde “aquilo” que estava estacionado mais parecia uma pipa do qualquer coisa que se assemelhasse a um avião. O amigo era Luis Carlos Silva (Paixão, como é conhecido na cidade), que até hoje desconheço quem tenha mais experiência em ultraleves do que ele. Meu coração batia na boca. Após a partida no motor o barulho era alto e não dava para conversarmos, a não ser com o intercomunicador que nós estávamos usando. Checados os comandos, os instrumentos, os equipamentos de segurança (os meus e os dele), partimos para a cabeceira da pista. O barulho do motor aumentou e ganhamos velocidade. Foi decolar e me apaixonar por essa modalidade de aviação.

Assim que comecei a voar solo, acabou acontecendo comigo o mesmo que acontece com a maioria dos pilotos de aeroclubes, “senti-me limitado”, pois acabamos conhecendo tudo que é possível ser observado em apenas uma hora de vôo. Quando este estágio chega, a paixão de voar fala mais alto que a monotonia e, por isso, quem gosta, quer alçar vôos maiores e conquistar novos horizontes. Foi nestas circunstâncias que decidi fazer uma viagem de ultraleve. Então parti para a escolha do destino. Pensei em ir até Recife, mas lembrei que esta rota já havia sido feita. Decidi então ir para o sul do país, mas também já tinham feito este trajeto. Queria uma coisa inédita e de maior significado, significado este que me lembrou imediatamente da viagem que fiz com meu pai a Manaus(AM), pelo CAN.

Desafio na mente, sonho no coração, depois de ter escolhido um destino, era necessário montar uma equipe e começar a peregrinação em busca de patrocínio, de tal forma que tornasse possível a realização da aventura. Mas antes de ir em busca do patrocínio, era preciso ter nas mãos um projeto detalhado. Foi um ano e meio de muito estudo para o planejamento da viagem e muitos pilotos que voam e voaram naquela região foram consultados. Realmente foram muitos dias e noites estudando a melhor maneira de chegar ao meu sonho: Manaus.

Todas as possibilidades tinham que ser abordadas, pois não queríamos deixar nenhuma dúvida para os nossos patrocinadores. Projeto na mente e no papel, era hora de viabilizar sua execução, buscar patrocínio. Agüentar todas as negativas das empresas visitadas. Principalmente porque eu estava vendendo um sonho, um ideal. Ir às empresas tentar convencer seus proprietários a comprar uma aspiração, sem apresentar nenhum histórico pessoal de realização semelhante, eu afirmo, foi difícil.

Então juntei tudo que estava no papel e fui ao MUSAL (Museu Aeroespacial do Rio de Janeiro), apresentar ao seu Diretor, o Ten. Cel. Av. Ref. Antônio Claret Jordão, que ao tomar conhecimento de minha intenção, imediatamente convocou o seu braço direito e particularmente “meu ídolo”, o Chefe de Operações do Museu, Cel. Av. R/R Antonio Arthur Braga (o Cel. Braga da Esquadrilha da Fumaça), para que me desse todo o apoio necessário para a realização da missão. Suas palavras foram: “Caso você queira sair desse Santuário da Aviação, nossas portas estarão abertas, mesmo porque essa missão de agora em diante passará a ser nossa”.

Juntando toda a força e entusiasmo que recebi desses mitos da aviação de nosso país, finalmente a primeira porta se abriu: “Tintas Ypiranga”. Mas, infelizmente, não o suficiente para fechar todos os custos. Continuando a “via crucis”, tempos depois a TASA – Telecom. Aeronáuticas S/A, (hoje encampada pela INFRAERO), da qual sou funcionário, também se interessou em participar conosco do evento. Quatro anos depois, desde o surgimento da idéia, a empresa que fechou os custos do projeto foi a VARIG S/A , a qual o seu atual presidente, o também Engenheiro Fernando Pinto, é um grande admirador da aviação desportiva.

Patrocínio garantido – Com o patrocínio garantido, iniciei junto com a equipe composta de meu cunhado Heverton Brandão, economista, 53 anos, piloto comercial, e mais o grande amigo Luis Carlos Silva (Paixão), técnico em eletrônica, 37 anos e piloto desportivo, a busca da aeronave que satisfizesse as exigências, expectativas e garantisse a segurança de uma jornada como esta. Agora a idéia era mais ampla, o trajeto seria Rio-Manaus-Rio. Loucura? Vamos ver…

Definido que o avião que seria um ultraleve anfíbio, biplace, com motor Rotax 618 (73 HP), com algumas modificações em relação ao modelo de série, como a substituição da hélice de madeira por uma de fibra carbono tripa, aumentamos as quantidades de sensores do motor para garantir um melhor monitoramento do mesmo. Tudo isso incluso nos custos do projeto, até mesmo as nossas estadias durante a viagem.

Um atraso na entrega da aeronave nos fez marcar uma data de partida além de nossas previsões. O Heverton, o Paixão e eu revimos tudo e decidimos que, por volta do dia 15 de julho, seria uma boa data, considerando que estaríamos de volta em trinta, trinta e cinco dias. Só não foi possível considerar os problemas subseqüentes à compra do avião: primeiramente, o filho do Paixão, de 12 anos, apresentou um quadro clínico que os médico suspeitaram de meningite, onde se conclui que o Paixão estaria fora da missão. Nada mais justo, eu faria o mesmo. Mas combinamos que qualquer eventualidade, eu o acionaria.

Com isso a equipe ficou reduzida. Dez dias antes da data marcada para o início da aventura o Heverton, que é empresário, entrou em contato comigo e disse que sua empresa estava se desenvolvendo e no momento seria imprescindível a sua permanência, e que combinaríamos que a partir de Brasília(DF) ele faria o resto da viagem comigo. Pensei também que não seria justo da minha parte permitir que ele abandonasse o seu sonho em prol do meu. Esta foi a minha negativa final. Estava decidido: eu iria sozinho.

Uma das fases mais difíceis do desenvolvimento do projeto foi a de “tourear” a minha mãe quando ela perguntava sobre os outros. Eu sempre dizia que estávamos em contato e que tudo estava certo. Nesses dias que antecederam a viagem, minha mente estava direcionada para a realização do meu sonho, do meu esforço, mesmo que só. Coloquei na minha cabeça que conseguiria.

A partida – Dia 15 de julho de 1997, Base Aérea dos Afonsos, pátio de operações do Museu Aeroespacial, 7 h, lá estávamos… minha família, pais, amigos, “meu ídolo” (Cel. Braga)- infelizmente o Cel. Jordão não pôde estar- o U-4175 (prefixo do avião), eu e toda a minha rigidez de musculatura querendo transparecer a todos que estava tranqüilo, junto ao meu Deus, que acompanhou-me até o final da jornada. Despedi-me de todos após beijos, fotos, abraços e muitas, muitas lágrimas e desejos de bons vôos e bons ventos.

Minha primeira etapa era Resende(RJ), decolei com muita ansiedade as 8h20, pois o destino era meu sonho. Foi inesquecível. Toda essa aventura, apesar de parecer arriscada, foi tranqüila. Estabelecemos em nosso planejamento uma altitude de cruzeiro segura, horários em que deveria estar voando, enfim, fiz a maior parte do percurso a uma altitude de 4000 pés (1300 m), cruzando 75 milhas/hora (120 km/h). As variações de altitude ficaram por conta das muitas queimadas que falarei mais adiante. Quanto ao horário, após algumas “pancadas” sérias no trecho entre São José dos Campos(SP) e Bragança Paulista(SP), resolvi disciplinar-me e voar no período entre as 7h e 11h, no máximo. Depois permanecia no solo para um almoço leve, um descanso, e retomaria o vôo das 14h até o pôr do sol, por volta das 18h. É importante frisar que, neste tipo de aeronave e principalmente voando solo, o desgaste do piloto é acentuado, pois, como o ultraleve é limitado, trabalha-se muito em trechos longos como este.

Para efeito ilustrativo, esse modelo de avião possui em seu painel os seguintes instrumentos: altímetro, velocímetro de pitot, indicador de rampa, bússola, contagiro, EGT duplo, CHT duplo, amperímetro, horímetro, marcador de combustível e temperatura da água. Fazia parte dos equipamentos, os portáteis, Rádio VHF c/ recepção de VOR, GPS c/ AIRMAP, todos alimentados por pilhas comuns ou por fonte direta (motor/bateria).
Dificuldades – Apesar de todos os cuidados tomados em nosso plano, tive momentos de grandes dificuldades, tanto em vôo, quanto no solo. Um deles já citei, que foi a séria turbulência próximo a Bragança Paulista; outra foi logo após Brasília(DF), na cidade de Corumbá de Goiás(GO), onde eu teria que fazer uma escala técnica, alternando Pirenópolis(GO). Pelas publicações aeronáuticas, a pista de pouso ficava dentro do perímetro urbano. A surpresa foi que, às 8h, sobrevoando a cidade, a 3500 pés, condições “CAVOK”, não havia pista alguma e mesmo fazendo órbitas nesta altitude não conseguia achar o campo. Restou-me a decisão, precipitada, de pousar na rodovia. Então iniciei a descida observando o tráfego dos automóveis, que não havia. Fiz várias aproximações no trevo (rotatória) para que após o pouso pudesse livrar a rodovia retirando o avião da mesma.

Escolhida a melhor aproximação, fiz o procedimento para pouso curto, sendo que após o toque, já na rolagem, minha asa esquerda colidiu com uma placa de sinalização vertical, ocasionando um “cavalo de pau”, avariando seriamente os trens de pouso, o flutuador da asa esquerda e comprometendo o bordo de ataque da mesma asa. Porque isso tudo? A Prefeitura remanejou a pista para 8 km distante da cidade. Resumindo, tive que permanecer nove dias retido na cidade, aguardando, da fábrica, peças de reposição acionadas pelo Heverton e que juntamente com o Paixão (também acionado), remontamos o avião até colocá-lo em condições de vôo. Aí então, nós, eu e Deus, seguimos viagem. Isto de certa forma abalou-me emocionalmente, mais isto é outra estória.

Se o risco de fazer uma aventura destas pode ser grande, a beleza e a emoção de fazê-la compensou. É impossível imaginar ou descrever como é a visão do por do sol com seus raios traspassando as nuvens e refletindo nas águas dos rios. É lindo de mais! Várias vezes observando imagens como esta, as lágrimas fizeram-me lembrar o quão pequeno somos diante da obra do criador.

No nosso plano inicial, a intenção seria a de ida e volta a Manaus(AM), mas devido ao atraso em minha saída do Rio de Janeiro, o acidente em Corumbá (nove dias parado) e ao fato de estar voando só, ao cruzar o norte de Mato Grosso e o sul do Pará, deparei-me com um fator novo: as queimadas. Elas já haviam iniciado, e é uma coisa assustadora, pois as camadas de fumaça são muito baixas e a visibilidade é nula. Consegui voar algum tempo no “visumento”, sem perder o referencial com o solo, mas próximo a localidade de Castelo dos Sonhos(PA), entrei literalmente em instrumento por cerca de dez minutos e sem equipamentos adequados para tal. O motivo é que estava muito baixo (300 pés de altura), sem conhecer a região e sem condições de pouso. Tive muito medo. Ao chegar a Castelo, encontrei com alguns pilotos de garimpo que me alertaram que caso eu retornasse, estaria muito pior inclusive para eles, conhecedores da região. Ali decidi, em função da segurança, que a minha volta seria de avião comercial. Aventura sim, suicídio não.

Hoje, vendo que o meu sonho foi realizado, que o desafio foi vencido, sei que os maiores colaboradores que tive foram primeiro Deus e depois a minha família (esposa e filhas), que me aturaram e me trataram com amor, porque de tanto receber “não” como resposta, acabava chegando mal em casa e as tratava de forma injusta, reconheço.

Minha esposa, meus pais, minha irmã e o grande parceiro e cunhado Heverton, foram a Manaus curtir comigo o meu aniversário e o final da jornada, o pouso na Base Aérea de Ponta Pelada, “destino do CAN”. Pena que o Paixão, outro grande parceiro, não pôde ir, para juntos desfrutarmos do nosso sucesso, mas sabemos que seu filho está bem.

A todos que de alguma forma colaboraram conosco para a realização deste evento, deixo o meu muito obrigado, pois já estamos pensando no próximo…

O autor desta aventura está procurando patrocínio para publicar o livro que escreveu sobre sua viagem.

Este texto foi escrito por: Nery Sá Freire

Last modified: junho 28, 2002

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