Webventure

Diário de bordo de um brasileiro no gelo


Montando a estaca de GPS (foto: Marcelo Krings)

Quando se pensa na participação brasileira em pesquisas na Antárctica, a primeira imagem que vem a mente de qualquer pessoa comum é a dos pesquisadores trabalhando duro em meio a neve e gelo do continente. Poucos sabem que junto a estes pesquisadores viajam todos os anos uma equipe formada por alpinistas do Clube Alpino Paulista , verdadeiros anjos da guarda dos pesquisadores brasileiros na Antárctica.

O acordo de cooperação entre o CAP e a Marinha do Brasil já existe na prática a mais de 18 anos, e foi oficializado a dois anos atrás. Todos os anos, quando se iniciam os preparativos para a Operação Antárctica Brasileira, e o envio de pesquisadores para o continente gelado, são selecionados alpinistas que trabalham na montagem de acampamentos, como guias, e garantem a segurança dos cientistas.

Para o alpinista Marcelo Krings, consultor e colaborador do Webventure a Antárctica já faz parte da sua vida. No caminho de volta, na temporada de 1999/2000, Krings escreveu a bordo do navio Ary Rongel memórias dos últimos meses na Antártica. Confira.

Faz alguns dias que estou tentando escrever. Pode ser difícil acreditar mas existe muita coisa que um alpinista pode fazer em um navio como este.

Estou a bordo do Navio de Apoio Oceanográfico Ary Rongel, retornando de mais uma comissão à Antártica.

Estamos navegando há 5 dias desde a Ilha Rey George, no Arquipélago das Shetlands do Sul. Já passamos pela temida Passagem do Drake, conhecida por ser um dos estreitos mais tempestuosos da terra e que tanto amedrontava os marinheiros da vela que se lançavam no desconhecido mar austral, entre os oceanos Atlântico e Pacífico.

Os marinheiros modernos também respeitam este mar mas a tecnologia e a técnica da época moderna possibilita navegar por GPS ou sistema de posicionamento global por satélite, saber a profundidade por sonar, utilizar radares para identificar um iceberg e ter a previsão do tempo por satélites meteorológicos.

Apesar da fama, o Drake foi bom conosco. Tanto na ida como na volta tivemos tempo bom, com pouco vento e mar tranqüilo, uma raridade que convêm apreciar como um belo presente de Netuno, o Rei dos Mares.

No momento estamos navegando no não menos famoso Canal de Beagle, fronteira marí-tima entre o Chile e Argentina, passando pela cidade de Puerto Williams no Chile , e em breve pela cidade de Ushuaia, na Argentina. Nosso destino final nesta “pernada” da via-gem é a cidade Chilena de Punta Arenas, onde toda a tripulação do Ary Rongel poderá desfrutar de um merecido natal e um ano novo em terra depois de quase 60 dias de mar na Antártica.

A navegação nestes canais intrincados é delicada, uma sucessão de passa-gens estreitas, curvas fechadas, montanhas nevadas e em poucas horas o Cape Froward, conhecido por ser o ponto mais austral continental da América.

Minha história, no entanto, começa um pouco antes, no porto da cidade do Rio Grande, no Rio Grande do Sul, de onde o Ary Rongel partiu em direção a Antártica nos primeiros dias de novembro. Meu trabalho nesta viagem, é participar como alpinista num projeto de pesquisa em Glaciologia que está sendo executado na Ilha Rey George.

Sair do porto é ruim. Por mais que o mar esteja calmo é possível sentir o jogo do navio. Na nossa partida o mar não ajudou: muito balanço e muita gente mareada. Dramin, cama e comida para que em alguns dias tudo passe. Engraçado, quando se sente mal no navio, as pessoas se recolhem aos seus camarotes e esperam tudo se acalmar. Eu normalmente faço o contrário, gosto de ver a “porrada” de frente , sempre que possível o passadiço é o melhor lugar para ver o mar se debatendo lá fora, acho que o horizonte ajuda a manter o equilíbrio e é bem divertido apostar qual o tamanho da próxima onda.

Depois de alguns dias de mar, chegamos a Ilha Elefante onde um projeto de pesquisa que trabalha com elefantes marinhos irá ficar por algumas semanas. O tempo ajudou muito: sol e visibilidade ilimitada possibilitaram um desembarque rápido e ininterrupto de carga e pessoal, tudo via helicóptero, desde o convôo do navio até o refúgio Emílio Goeldi, na Ilha Elefante. O dia estava perfeito: os picos da ilha contrastavam com o azul profundo do céu !

Nesta ilha, a tripulação maltrapilha do Endurance, navio de Sir Ernest Shackleton, permaneceu a espera de resgate, durante a época heróica das descobertas e explorações antárticas. Esta é uma gloriosa aventura antártica. Shackleton tentou o último desafio de sua época cruzar a Antártica a pé já que o polo já tinha sido alcançado em 1910 por Roald Amundsen Shackleton foi detido pelo gelo, quando seu navio foi aprisionado e posteriormente destruído pelo mar congelado. Após um sem número de dificuldades seguiu com pequenos escaleres por muitas milhas de mar agitado até chegar na Ilha Elefante e posteriormente nas Orcadas do Sul, de onde retornou para buscar sua tripulação que lá ficara no local hoje conhecido como Praia dos Naufragos em agosto de 1916. Não perdeu nenhum dos 22 homens que ficaram na ilha e nunca perdeu a esperança de encontra-los vivos. Recomendo a leitura de alguns livros que relatam em pormenores esta expedição.

De Elefante seguimos para a Ilha Rey George, onde foi feita uma parada de alguns dias para realizar o abastecimento da Estação Antártica Brasileira Comandante Ferraz, transferindo gêneros, combustíveis e outros itens, depois do longo inverno austral. A estação é guarnecida permanentemente durante todo o ano. Um grupo de militares e pesquisadores passaram o inverno trabalhando no desenvolvimento de projetos científicos, fazendo a manutenção da estação e preparando-a para o novo contingente de pesquisadores que chega no início de dezembro, quando de modo geral o clima é mais ameno e um maior número de projetos de pesquisa podem trabalhar em campo.

Nosso acampamento esta dividido em duas fases. Na primeira fase, um acampamento base com capacidade para 10 pessoas é instalado na Península Fildes. A quantidade de carga é imensa. Absolutamente tudo o que podemos precisar neste lugar foi previsto para uma estadia de quase 60 dias: a lista é gigantesca mas principalmente muito pesada ! Todo o desembarque desta carga é feito por helicóptero, cerca de 80 vôos entre o navio e o local do acampamento. Devido ao tempo ruim e baixa visibilidade, as operações aéreas foram interrompidas várias vezes, demoramos quase uma semana para poder desembarcar todo o material em terra e ter condições de sobrevivência no acampamento que permitissem que o navio pudesse se deslocar para seus outros afazeres. Determinado dia durante a descarga a carga nao podia continuar via aérea, os botes do navio foram colocados na água e alguns ítens foram desembarcados por mar. Para tanto deviamos nos deslocar por alguns quilômetros de glaciar até a beira do mar, receber a carga dos botes e retornar para o acampamento puxando os trenós com as motos de neve.

No dia 20 de novembro, ficamos em definitivo. Estávamos em quatro: dois pesquisadores novatos, um pesquisador alemão com 5 operações antárticas e eu o alpinista de plantão com 4 operações antárticas. O primeiro momento foi um pouco chocante, o barulho do helicóptero passou depois de um ultimo vôo de despedida e ficou o vento e o silêncio da antártica.

Já com uma barraca coletiva montada, e pronta para qualquer emergência meteorológica, olhamos para aquela carga tão esmeradamente arrumada nos últimos dias e pensamos, nossa quanta coisa ainda para ser feita!! Toneladas de comida, água, equipamento, combustível, motos de neve, jaziam ali, esperando serem colocadas nos seus devidos lugares e em uso.

Passado o choque, passamos logo a ação. Já que tínhamos cozinha vamos logo aos dormitórios!!! Nesta época o gelo e a neve compactada ainda são abundantes nesta região mas sabíamos, por experiência anterior, neste mesmo lugar, que em 3 ou 4 semanas pouco gelo restaria em volta do acampamento. Procuramos lugares limpos de neve e relativamente altos e iniciamos a montagem das barracas individuais, tão necessárias quando se pretende passar quase dois meses acampado. Trata-se apenas de uma questão de privacidade e conforto. Em um acampamento tudo se divide, tudo é de todos, assim reservamos um pouco de individualidade para a hora de dormir, funciona bem, trabalhamos junto durante muitas horas, dormimos sozinhos com nossos livros e anotações como bem quisermos.

A temperatura neste local, considerado por muitos uma zona sub antártica variou entre – 3 a + 4 graus positivos no período de um mês. O frio é muito bem vindo. Geralmente com origem no vento sul, este mantém as roupas secas, as superfícies da neve dura para o deslocamento das motos e ajuda a dormir mais confortável. Já o vento norte quase sem-pre nos traz vento forte, úmido e com chuva, um horror, pois o “calor “ nunca passa de poucos graus acima de zero, que no entanto são suficientes para derreter tudo e encharcar nossas roupas de goretex cada vez que temos algum trabalho a fazer no campo.

Depois de quase uma semana de arrumação o acampamento da Península Fildes estava montado e funcionando como um relógio. Cada coisa em seu lugar, comida gêneros, equipamento, geradores, barraca cozinha, barraca rádio / laboratório, barraca de uso geral e todas as barracas individuais para as 4 almas que habitavam o acampamento e para as 5 que chegariam no vôo de apoio da Força Aérea Brasileira, na Base Aérea Chilena de Frei em alguns dias.

Nossa segunda tarefa foi a de deslocar praticamente a metade de toda a carga recebida na Península Fildes para um acampamento na Calota de Gelo da Ilha Rey George distante, 18 km em linha reta do acampamento inferior.

Toda a carga deve ser acondicionada cuidadosamente em trenós de neve, desenhados no fim do século passado, chamados de trenós tipo Nansen, em homenagem ao seu idealizador, o famoso explorador polar ártico Noruegues Fridtjof Nansen. Estes trenós de madeira, de construção moderna porém artesanal foram desenvolvidos por ele assim como barracas, roupas, alimentos e um sem número de utensílios e detalhes de equipamentos que certamente até hoje facilitam nossa vida no trabalho no gelo. Os trenós podem ser tracionados por cachorros, homens a pé ou em esquis ou rebocados com motos de neve, que é o nosso caso.

A travessia de glaciar é uma tarefa bastante delicada em vários aspectos. Primeiro no que concerne a rota a ser seguida, trata-se de um deslocamento em uma grande extenção de gelo e neve, sem referenciais terrestres, normalmente com visibilidade zero e utilizando somente navegação por GPS. Todo cuidado é pouco e a atenção é constante. Durante o caminho devemos encontrar estacas de alumínio, que colocamos previamente, marcando os desvios na rota pelo glaciar. Muitas vezes estas estacas estão separadas por vários quilômetros de distância e em condições climáticas extremas, ventos fortes, neve e às vezes chuva e, como já disse acima, com visibilidade zero, considerada um whiteout pesado exige bastante atenção encontra-las.

Outro ponto a ser considerado é a carga que se leva no trenó, que pode atingir cerca de 300 kg, que deve estar balanceada e perfeitamente amarrada. Ainda convém lembrar que as motos de neve são aparelhos perigosos, que precisam treinamento adequado, atenção e responsabilidade ao pilotar. São máquinas velozes e fortes que podem atingir facilmente 100 km/h ou mais e puxar pesadas cargas.

Tudo isto combinado e somado ao frio na superfície do glaciar, a qualquer hora do dia e da noite, fazem do transporte de carga em trenó ou o simples deslocamento de pessoal uma tarefa delicada que deve ser muito bem planejada e executada.

Fizemos várias destas viagens com cargas. A primeira foi durante a noite, bem, obviamente não era noite, pois nesta época do ano o sol se põe durante poucas horas e o máximo de escuridão que se consegue é uma suave penumbra, ideal para ressaltar o contraste do gelo com as nuvens e a neblina. O primeiro trecho do caminho ocorreu sem problemas. Tomamos muito cuidado pois tínhamos dois motoristas inexperientes ao guidão, mas lá pela cota 500 metros, uma tempestade de vento e neve desabou sobre nós. Nada sério, chegamos perto do local do futuro acampamento, marcamos o ponto com o GPS, deixamos a carga no local para ser recolhida na próxima viagem, em alguns dias. As próximas cargas para cima do glaciar foram muito mais tranqüilas. O difícil foi desenterrar a carga da tempestade que estava debaixo de uns bons 2,5 metros de neve.

Numa destas gloriosas tardes de carga pelo glaciar decidimos iniciar a montagem do acampamento superior. Montamos apenas uma barraca piramidal, conhecida como tonypandy ou snowsledge, próprias para serem carregadas em um trenó para longas viagens e que resistem facilmente a ventos superiores a 200 km/h. Mesmo sendo um modelo do século passado, assim como o trenó, ainda não foi superado em design no veloz século 20.

Neste momento, tínhamos no acampamento da calota, todas as barracas, butijões gás, combustível, geradores, barracas, comida e bastante equipamento.

A ansiedade no acampamento aumentava enquanto esperávamos nossos colegas que chegariam em alguns dias. “Nosso” espaço que criamos e cuidamos com tanto cuidado durante semanas estava prestes a ser ocupado por nossos amigos que chegavam, asseados, de roupa limpa, cansados da civilização e com a corda toda. Não que estivéssemos cansados. Eu poderia ficar por lá muito tempo, mas teríamos um desencontro de alguns dias até que nossos colegas se adaptassem ao nosso ritmo de trabalho e a nossa pequena cidade de pano, nylon e alumínio.

Pois é, chegaram e se adaptaram rápido. Em 2 dois dias já estavamos com a corda toda, trabalhando no glaciar como se já estivéssemos lá desde o início. O trabalho no gelo era a opção de todos! Às vezes o chefe da expedição teve a dificil tarefa de escolher quem participaria deste ou daquele trabalho, pois todos queriam participar. Um fato curioso foi a média de idade deste distinto grupo composto por 7 pesquisadores e 2 alpinistas : 27.4 anos. Apesar desta curiosidade o que não faltava no grupo era experiência antártica, pois somando a participação de todos, incluindo os 5 calouros tínhamos um total de 21 participações em expedições antárticas, nada mal para uma média de idade tão baixa.

O trabalho de carga prossegue glaciar acima e um belo dia a montagem total do acampamento Calota era uma realidade. Agora o acampamento superior estava plenamente operacional, esperando receber 9 pessoas para uma estadia de mais de um mês vivendo sobre a calota de gelo da Ilha Rey George. Nada faltava e tudo o que era necessário tinha sido transportado. O conforto do acampamento inferior, que ficou montado na parte inferior da península, era imitado e em muitos pontos melhorado no acampamento Calota.

Estamos agora perto do nosso local de trabalho a Geleira Lange, aonde o glaciólogos pesquisam entre outras coisas o movimento e o derretimento dos glaciares. O trabalho agora é manter o acampamento funcionando e livre do acúmulo de neve depois de cada nevasca. Para manter as barracas livres da neve o truque e bastante simples, agora que foi descoberto. Colocamos todo e qualquer obstáculo ao vento, sejam barracas, motos, caixas ou trenós, o mais afastados possíveis uns dos outros e completamente desalinhados entre sí em realação ao vento predominante. O vento sopra carregando neve , normalmente a desaceleração do vento provocada pelo obstáculo gera uma duna, de vários tamatos e formatos, de acumulo de neve na parte contrária à exposta ao vento. Tudo o que estiver próximo e alinhado com o obstáculo e o vento provavelmente será enterrado. Mesmo assim alguns de nós dormem com uma pá dentro das barracas, só por precaução. Numa destas noites o vento chegou a 110 km/h. Nada de grave aconteceu, pode se dizer que é uma situação normal, porém a porta da barraca cozinha amanheceu soterrada e para entrar somente cavando.

O trabalho científico exige a colocação de estacas de alumínio em pontos determinados do glaciar. O posicionamento das estacas é medido na sua instalaçao por um sistema de GPS Diferencial com precisão de centímetros, com intervalos de semanas a possível diferença entre as medidas pode resultar em uma medida do deslocamento da geleira. Obviamente esta é uma explicação muito simplificada, mesmo por que acho que não saberia explicar muito mais. Além disto são feitas medições do derretimento da neve e medidas meteorológicas realizadas por estações automáticas que instalamos em alguns pontos da ilha.

O dia a dia lá em cima é bastante árduo e normalmente se troca o dia pela noite. Levanta-se tarde para os padrões urbanos e vai se dormir com o cantar dos galos. A explicação é simples: tanto faz a hora que se trabalha, aqui os costumes e o conservadorismo não tem lugar, a natureza é quem manda, é a lei do gelo e da meteorologial. A noite, por ser um pouco mais fria, é muito mais fácil para se deslocar com as motos pelo glaciar e o con-traste é melhor. Temos luz de dia e à noite. O relógio biológico sofre um pouco no início mas em poucos dias é possível se acostumar e “mudar de fuso” sem problemas.

Infelizmente meu dia de iniciar a volta para casa chegou rápido. No total serão, desta vez, 62 dias fora de casa. Senti muito deixar meus companheiros no glaciar e poucos sabem como eu gostaria ter ficado lá com eles.

O mais interessante é que encaro esta atividade de Alpinista na Antártica como um trabalho profissional embora muitos discordem disto. O compromisso e as responsabilidades assumidas foram cumpridas e agora os pesquisadores estão acompanhados por mais alguns dias de uma alpinista muito competente o que me deixa despreocupado quanto a segurança das pessoas. Não tenho do que me queixar pois foi uma temporada ótima cheia de desafios e bons momentos. É uma pena que eu tenha me apegado tanto as pessoas seus jeitos, aos seus comportamentos e às suas necessidades. Sinto muito a falta daquelas pessoas. O mais importante é que no decorrer desta experiência marcante de estar outra vez num acampamento antártico, percebe-se os amigos que se fez e dos quais simplesmente se quer estar junto, para rir, trabalhar, ajudar e ou simplesmente viver olhando o branco infinito do glaciares.

Este texto foi escrito por: Marcelo Krings