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COLUNA ANTONIO PAULO: Displicência na escalada


Mont Blanc onde Antonio trocou o tempero por conservante (foto: David Baum)

A displicência é uma grande inimiga do escalador – lendo as estatísticas publicadas anualmente pela American Alpine Club, da qual sou sócio, em 2008 ocorreram 117 acidentes nos EUA, com 211 pessoas envolvidas e 15 mortes. A média de mortes de escaladores lá é de 20 pessoas por ano, sendo que parte considerável tem como causa a falta de atenção do escalador. Entretanto, displicência, “burrice” e azar não têm nada a ver com experiência. Dos 7.320 casos de acidentes registrados nos EUA, 36% eram de escaladores com muita experiência; 31% de escaldores com experiência mediana e 33% sem experiência.

Certa vez estava escalando o Ás de Espadas 6º VIIa (Pão de Açúcar) com alguns amigos muito experientes. Um deles, o Gabriel, fazia cordada com a esposa. Ele estava na base empolgado, contando uma história e colocando a corda na cadeirinha ao mesmo tempo… Subi primeiro com minha companheira, terminei o primeiro esticão de corda de 50 metros, e esperei por eles. Quando o Gabriel guiava, e já estava a 40 metros de altura, o nó da corda se desfez e ela caiu. Ele ficou “congelado” numa passagem estranha, sem poder subir ou descer, com os olhos arregalados. Conversando, ele se esqueceu de terminar o nó! Sorte eu estar logo acima para ajudá-lo.

A descida da escalada por rapel é a parte mais perigosa, porque o escalador perde a conexão física com o parceiro através da corda. Algumas vezes já me esqueci de ancorar na descida de escaladas longas, quando o rapel termina sobre pequenos platôs. E o susto quando você descobre que está soltinho… E a sorte! A maioria das mortes de escaladores no Brasil, menos de 20 em toda a história, ocorreu durante o rapel.

Obviamente existem displicências de naturezas variadas. Certa vez, no Monte Rainier (4.392 metros), EUA, eu estava escovando os dentes e percebi que a pasta de dente não fazia espuma e era cremosa. Depois percebi que estava usando pomada para assaduras de bebê! A embalagem era parecida com pasta dental… Displicência de pai quando arruma a mochila as pressas.

Outra vez, por causa de uma larica absurda, abri um pote e comi parte considerável da massa de tomate! Pensava que era geléia de morango. Descobri o erro na manhã seguinte… Isso foi em 1991, na Patagônia. Não faço mais isso. Displicência estúpida.

Cozinhando comida liofilizada no Mont Blanc (4.810 metros), abri o pacote e despejei a comida numa panela, mas no lugar de colocar o pacotinho de tempero, coloquei o segundo, com um produto químico para preservar o alimento. Achei o gosto daquela comida horrível, mas fui perceber mesmo o erro de manhã, quando fui ao banheiro…. Eca! Displicência provocada pelo o cansaço em altitude.

Tudo isso é displicência, ou sentido alterado, o que pode não terminar de forma tão engraçada quando estamos escalando. O que mais me incomoda na escalada esportiva é a quantidade de pessoas conversando na base e que não dão a devida atenção para quem está escalando, e isto já causou muitos acidentes.

Certa vez, dirigindo sozinho para ir escalar, de Red Rocks (Nevada) para o Grand Canyon (Arizona), peguei uma tempestade de neve no caminho. Dentro do carro estava quentinho e eu usava apenas camiseta. Tive que parar para abastecer o carro em plena tempestade, no deserto, literalmente no meio do nada. De camiseta, sai para encher o tanque, mas esqueci a chave na ignição. O vento bateu a porta, trancando-a, e fiquei preso do lado de fora. Depois de 15 minutos tentando abrir o carro e congelando, ainda fui ameaçado de ser preso pela a polícia por tentar arrombar o meu próprio carro! Displicência de alguém encantado com a paisagem e a neve caindo…

Em dezembro de 2004, eu estava indo escalar sozinho no Vale de Todra (Marrocos). Quando entrei no deserto, a gasolina do carro emprestado que eu dirigia, acabou. Parei num posto, mas deslumbrado com a paisagem, não prestei atenção que o fretista enchia o tanque com óleo diesel, porém, o combustível certo era gasolina. O carro fez um monte de fumaça preta e não saiu do lugar. “Ai meu Deus, destrui o carro!”, pensei na hora. Fiquei com muito medo, estava nas montanhas em pleno Saara, e fazia muito frio. Então, comecei a discutir com o frentista estúpido sobre o que ele havia feito. Mas só na base da mímica, a única palavra que eu sabia de árabe era Alá: “Alá a m. que você fez!”. Depois de lavar o motor e trocar os combustíveis, consegui chegar ao vale para escalar no dia seguinte. Displicência de turista idiota.

Em muitos esportes, como a escalada, não podemos nos dar o luxo de ser displicentes, pode ser fatal. Existem inúmeros casos e as estatísticas americanas provam isso. O número de acidentes fatais de escaladores experientes pode ter como causa o erro humano, que pode ser a displicência. Mas pode ser também por mera fatalidade, mais conhecida como azar, quando ocorrem avalanches e queda de blocos rochosos. O material técnico não costuma falhar. Dentro do grupo de escaladores experientes, uma parte morre em escaladas difíceis ou em montanhas perigosas, mas uma parte morre em escaladas fáceis, corriqueiras para eles. Como exemplo a morte de dois ícones do alpinismo mundial, o francês Lionel Terray, em 1965, e o alemão Kurt Albert, em 2010, entre muitos outros. Entretanto, a displicência pode ser provocada pelo o cansaço e o sono, os principais inimigos dos escaladores em montanhas alpinas muito altas. Nelas, é comum escaladores precisarem escalar durante dois ou três dias sem poder descansar, o que pode ter contribuído com a morte de um grande amigo e escalador experiente, o Bernardo Collares, em janeiro de 2011, no Fitz Roy (3.359 metros).

Boas escaladas e deixe a displicência longe da montanha.

Este texto foi escrito por: Antonio Paulo Faria