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Alpinista e arquiteto Marcelo Krings analisa a arquitetura da Comandante Ferraz

Redação Webventure/ Montanhismo

Sala de estar da estação (foto: Marina Guedes)
Sala de estar da estação (foto: Marina Guedes)

É um pouco difícil escrever sobre um acidente que levou duas vidas, deixou ao menos um ferido e impactou diretamente um grande número de pessoas que vivenciaram o incêndio na Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF), na madrugada do dia 25 de fevereiro.

Infelizmente, atividades em locais inóspitos apresentam riscos, isso é um fato. Ferraz já não era um local de exploração no sentido geográfico da palavra, pois a Península Keller e suas redondezas são bem conhecidas e documentadas. No entanto, alguns riscos objetivos, típicos de locais afastados sempre estiveram por lá e continuarão a rondar a experiência polar.

Por mais que se tomem todos os cuidados conhecidos, acidentes acontecem. Hoje, cabe à Marinha do Brasil investigar e oferecer à sociedade uma explicação do que de fato aconteceu.

Cada tragédia traz seu legado de dor e de perplexidade. Esta, em particular, pode nos trazer também aprendizado e discernimento.

Ferraz não foi a primeira e é certo que não será a última estação antártica a ser consumida pelo fogo. Estações da Austrália, Rússia, Argentina, Inglaterra e Nova Zelândia, só dentre as que eu meu recordo, já foram atingidas por incêndios de várias proporções. Os motivos da ignição inicial nas estações atingidas são conhecidos em alguns casos e em outros não. O que se sabe, com certeza, é que o combate aos incêndios na região antártica é particularmente difícil.

Nos casos acima, algumas construções não dispunham de água suficiente por estarem afastadas do mar e das fontes liquidas naturais. Também possuíam materiais construtivos ou isolantes de madeira e assemelhados que são de rápida ignição e propagação. E, se somando a essas questões, a umidade relativa do ar na Antártica é baixíssima, o que colabora para uma propagação do fogo de modo “eficiente”.

O vento também é um fator preponderante quando se fala de fogo. Na Antártica venta, às vezes, muito e por bastante tempo. O vento alimenta o fogo com oxigênio e promove o seu rápido deslocamento.

Como eu já disse acima, atividades de exploração apresentam riscos, às vezes graves e mortais. Até agora, fiz alguns comentários sobre fogo, mas a lista é extensa e é preciso estar minimamente preparado e consciente dos riscos típicos em atividades polares.

O Programa Antártico Brasileiro prepara bem seus cientistas e militares. Existem treinamentos, palestras e simulações exigidas internacionalmente, que o programa segue à risca e, em alguns casos, se excede em busca de um melhor preparo de seu pessoal.

Estou certo de que este treinamento evitou um desastre de maiores proporções no que tange vidas humanas.

Eu não estava em Ferraz nesta temporada. Minha última passagem por lá como alpinista da estação foi em 2007, encarregado de oferecer um treinamento e ambientação para o grupo-base que iria ficar de 2007 até março de 2008 na EACF.

Minhas considerações estão baseadas no único fato conhecido até o momento: houve um incêndio que começou na praça de máquinas, local onde ficam os geradores.

O que causou o incêndio não é foco desta minha breve análise. Isso será, tenho certeza, determinado depois do inquérito militar que fará a apuração dos fatos, tirará suas conclusões e as apresentará à sociedade.

Ferraz foi inaugurada em 1984. Oito módulos de containers metálicos foram instalados em quatro dias de intenso trabalho, por pouco mais de 12 pessoas, militares, técnicos da empresa que forneceu o material e pesquisadores.

Essas e outras descrições iniciais estão em um informe técnico intitulado “O uso pioneiro de containers modulares em construções nas Ilhas Shetlands do Sul”. Os containers eram modulares, de tecnologia construtiva conhecida, que produziam um abrigo seguro e eficiente, e proporcionavam a incrível possibilidade de se instalar uma estação antártica em poucos dias a mais fantástica oportunidade de habitar, compreender e evoluir em pesquisas de todo tipo, inclusive arquitetônicas e construtivas, o que evidentemente não era pouco considerando a nossa condição de país tropical sem experiência nas questões técnicas e de vivência em um ambiente tão extremo como a Antártica.

Vale ressaltar que tanto na primeira como na segunda expedição primarias essa última instalou e inaugurou a estação o Programa Antártico contou com a ajuda de dois experientes alpinistas do Clube Alpino Paulista: o saudoso alemão Adalbert Kolpazick e o senhor Peter Barry, neozelandês, ainda ativo e nos quadros do clube.

De oito containers de 1984, a estação atualmente chegava perto dos 2.700 metros quadrados de construção (ou, 62 módulos). Uma pequena vila com tudo aquilo necessário e pertinente para atender às demandas anuais de pesquisa e sobrevivência, tanto no verão como no inverno austral.

A construção com contêiner foi levada a um extremo interessante. Ampliações foram feitas para acomodar mais pesquisas, mais equipamentos e mais pessoas. Containers foram acoplados, soldados, cobertos e revestidos em diversas formas, dando a possibilidade de se obter espaços mais amplos e confortáveis e tornando a estação nesta pequena vila.

A cobertura da estação foi cobrindo os espaços livres entre os containers. Agora, as pessoas podiam se deslocar entre as diversas áreas sem se expor a frio, chuva ou neve. A cobertura era de fato conveniente.

O piso foi selado com blocretes de concreto e uma série de atividades passou a ser possível do lado externo da construção porém, com uma cobertura e paredes metálicas que minimizavam o efeito da intempérie antártica. Isto foi bastante conveniente e, assim, mais espaço interno foi disponibilizado para a circulação e o acondicionamento de materiais.

Diversas áreas críticas, do ponto de vista do risco de incêndio, também ficaram debaixo dessa mesma e praticamente contínua cobertura. Alguns laboratórios que possuíam produtos químicos ou inflamáveis, depósitos de materiais restritos ou perigosos como lubrificantes e outros químicos, garagem de máquinas pequenas e grandes com seus combustíveis e, claro, a casa de máquinas (ou sala de geradores).

Um incêndio em uma destas unidades poderia tomar proporções de difícil controle.

Ferraz sempre foi equipada com alarmes e equipamentos contra incêndio. O grupo-base de militares é exaustivamente treinado para esse tipo de situação, e simulações sempre foram uma rotina constante, até também para adaptar os pesquisadores e os visitantes que por lá estivessem realizando tarefas.

Participei de alguns destes simulados e posso dizer que exceto pela inexistência do fogo, a atividade foi extremamente realista.

Apesar de todos os cuidados dispensados, o fogo irrompeu na praça de máquinas. Em algum momento, será descoberto o motivo. O combate se iniciou rapidamente, mas mesmo assim, não foi possível restringir sua ação ao local de início, nem mantê-lo sob controle.

Relatos dão conta que havia vento e que este colaborou na disseminação das chamas. O teto contínuo é um dos problemas que precisa de atenção na hora da investigação. A proximidade de áreas críticas inflamáveis e o corpo da estação certamente são outros dos problemas.

(Clique aqui para ver mais imagens da estrutura interna da estação.)

O incêndio na praça de máquinas poderia ter acontecido da mesma maneira, como um acidente inevitável. Mas, se o local onde os geradores fazem seu trabalho estivesse afastado do corpo da estação a uma dezena de metros, com uma topografia e uma contenção favoráveis, possivelmente a grande destruição teria ficado confinada à praça.

Testemunhas comentam do fato de o fogo se deslocar rápida e internamente, o que corrobora a questão do isolamento de áreas perigosas e da importância de se ter espaços descobertos entre estas áreas.

Claro, aprimorando essa questão, geradores em stand-by e de emergência também deveriam estar em locais relativamente afastados, o que também não era o caso. Assim, se acontecesse uma falha catastrófica, as máquinas sobressalentes poderiam gerar energia em estado de emergência para manter a estação com limitação de potencia, porém segura e funcionando.

O mesmo procedimento de descentralização, digamos assim, deveria estar adaptado em laboratórios, que têm produtos perigosos, cozinha, incineradores de material orgânico e locais com máquinas, motores e seus combustíveis.

Outros cruzamentos de situações perigosas deveriam ser feitos, designando para cada local seus potenciais riscos. Assim, um mapa de perigo poderia determinar onde e como planejar a urbanização de uma estação. É um processo fácil para um prédio novo, mas difícil e custoso para um prédio com 25 anos de uso e sucessivas reformas e ampliações.

Uma análise de imagens pós- incêndio dá conta que as construções afastadas da estação sobreviveram sem danos. O módulo de pesquisa química, a pouco mais de 100 metros de Ferraz, assim como o módulo de meteorologia, a estação rádio-emergência, o heliporto, os tanques de combustível e outras construções menores. Todas nesse raio não aparentam qualquer dano, embora estivessem com pouca condição de habitação constante, devido à falta de aquecimento ocasionada pela ausência de energia elétrica.

Isso pode ser um indicio de que o exercício de suposições aqui descrito pode ter alguma lógica, merecendo algum tempo de estudo e reflexão.

Afastar e isolar determinadas áreas não são necessariamente um problema túneis, passarelas e outras estruturas se prestam a interligar as construções. Existem muitas possibilidades, muitos partidos arquitetônicos e projetos possíveis. As combinações são ilimitadas para uma construção que atenda a sua função fim de pesquisa, que seja segura e ambientalmente pouco agressiva.

Estou certo de que nossos arquitetos e engenheiros encontrarão soluções viáveis caso um novo projeto de construção polar ou até uma reinstalação de Ferraz venham a ser colocados em prática pelo Governo.

Desconheço o futuro. Li a nota da Presidente Dilma, escutei as declarações do Ministro Celso Amorim, e realmente espero que uma reflexão profunda e técnica seja feita sobre esse infeliz acontecimento.

Este texto é dedicado ao primeiro-sargento Roberto dos Santos, com o qual tive o prazer de conviver em fevereiro de 2007.

“Science it’s a cruel mistress.” (Le Grand Bleu, 1988).

>> Sobre a Antártica, eu recomendo:
A Conquista do Polo Sul Volume 1 e 2, de Paul Siple. Editora Itatiaia (1962).
Los Hombres Del Hielo, de Vivian Sir Fuchs. Editora Juventud Barcelona (1982).
A Pior Viagem do Mundo, de Apsley Cherry-Garrard. Companhia das Letras (1999).
Consulte também www2.mre.gov.br/dai/tratantartida.htm.

Este texto foi escrito por: Marcelo Krings

Last modified: março 1, 2012

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