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A descoberta de Mallory (parte 2)

Arquivo/ Montanhismo

Tibet – O alpinista Dave Hahn segue contando os detalhes da descoberta histórica do corpo do britânico George Mallory, desaparecido há 75 anos no Everest. Nesta segunda e última parte do relato, Hahn conta como a equipe descobriu que havia encontrado Mallory – e não Irvine, como acreditaram de início. E ele descreve as pistas que o levaram a crer que a dupla de alpinista estava voltando de mais um triunfo no Everest quando aconteceu a fatalidade.

“Todos seguiram na direção da face norte e Andy me falou por rádio que o Conrad estava se afastando muito e para o lado errado. A maioria das fatalidades no Everest, pelo que se sabe até agora, aconteceram nos últimos 10 anos e eu havia me convencido de que a maior parte das vítimas eram alpinistas exaustos que simplesmente sentaram para esperar a morte. Eu tinha decidido acreditar que as quedas eram raras. Quando aconteciam, as pessoas aparentemente tinham caído das cume norte. Era óbvio que eu tinha errados os cálculos. Acho que eu tinha colocado na minha cabeça que Andrew Irvine tinha sentado, provavelmente depois de ver o companheiro mais velho e experiente, (George) Mallory, longe dele, a caminho de Kangshung. Então, eu estava convencido de que o encontraria num sono de paz em algum lugar menos inclinado.

Mas os chamados vieram, abafados, sob a minha roupa e a máscara de oxigênio. Ao longe eu via o Andy seguindo para um barranco bem íngreme coberto de neve, em direção ao Conrad, que parecia estar a quilômetros de distância. Havia muita interferência do rádio e eu percebi que não estive prestando atenção por alguns minutos. Gritei para o Tap para saber o que estava acontecendo e ele disse que o Conrad tinha “encontrado alguma coisa” e queria todos nós lá.

Nossa conversa pelo rádio tinha de ser protegida uma vez que outras expedições e metade do Nepal poderia facilmente nos ouvir pela nossa estação de alta transmissão. Queríamos evitar a dispersão de qualquer informação que trabalhamos tão duro para conseguir. Quer dizer que eu não podia sair dizendo num megafone: ‘Conrad, por que eu deveria ir até aí arriscando o meu pescoço nessas rampas?” E ele não podia me responder que tinha encontrado um “velho inglês morto”, mas eu sabia que ele tinha. Isso tudo nos levou ao um “momento de silêncio” frustrante no rádio para Jochen, Eric e nossa equipe de apoio no acampamento base.



“Não havia dúvidas: eles olhavam para um homem que estava grudado no Everest há 75 anos.”



Voltando à montanha, aquele era o ponto de partida para uma tarde única. Tap conseguiu a atenção de Andy e eles correram até o Conrad. Eu me mexia um pouco mais lentamente para filmar um pouco a cena e tentar não cair. Na minha cabeça, ficamos procurando por 20 minutos. Depois me disseram que foi entre uma hora e meia e duas horas. Assim mesmo, parecia incrível que tínhamos encontrado Sandy Irvine em tão pouco tempo e sem muito esforço. No entanto, não havia dúvidas, quando cheguei perto dos meus companheiros, que eles estavam olhando para um homem que estava grudado no Everest há 75 anos.

A roupa dele tinha praticamente sumido, assim como boa parte do seu corpo, e a pele estava totalmente branca. Parecia uma estátua de mármora grega ou romana. Os outros apontaram na hora para a bota de pregos ainda conservada no seu pé e para a fratura na tíbia e fíbula logo acima. Vi a corda ao redor do corpo, traçada e branca, quase que mais um artefato de decoração do que ferramenta vital para sobreviver no mundo vertical. Nunca alguém tinha tocado naquele homem até então e as perguntas sobre idade já inundavam nossas cabeças.

Ele morreu de uma queda. O trauma ali, mas não havia esmagamento. Então parecia que ele não tinha caído do cume da face norte, onde o seu legendário machado de gelo havia sido encontrado em 1933. Seria demais para um corpo. É, aquele homem caiu das rochas, e ele deve ter escorregado um pouco para baixo das rampas de gelo, mas havia sobrevivido à queda. Ele foi caindo com os braços esticados, mãos espalmadas e então se posicionou para morrer, cruzando uma perda sobre a outra para um alívio final. Olhando para a sua roupa grossa (talvez com sete ou nove camadas de algodão e lã) era óbvio que o fim veio pouco tempo depois da queda para um homem em choque, a 8.200m. A corda mostrava que a dupla mais famosa do alpinismo não havia se separado por vontade própria. A montanha os separou.

O homem estava em paz. Conrad comentou que se sentia desconfortável ao chegar perto de figuras contorcidas e angustiadas encontradas em meio a montanhas. Mas esse corpo era diferente. Depois de alguns minutos de fotos e um silêncio atordoante, nos colocamos ao seu redor para trabalhar. Mochilas e oxigênio foram deixados de lado quando começamos a procurar por traços que o identificassem e relíquias. Eu duvido que algum de nós, com toda a experiência em alpinismo, achou que procurar o corpo de um morto fosse fácil, mas todo mundo estava um pouco surpreso com tamanha dificuldade na tarefa.

A cabeça e os braços do alpinista, que estava deitado de bruços e de cabeça para cima, estavam tão congeladas que se colaram junto ao corpo e à rocha com o passar dos anos. Não dava pra virá-lo de frente. Chegar até embaixo dele exigiu horas de escavação paciente com machadinhas de gelo e facas pontiagudas. Cortando a roupa, Jake encontrou um selo do fabricante, onde em volta estava escrito: “G. Mallory.” Paramos tudo e olhamos um para a cara do outro. Os primeiros pensamentos foram: “Por que Andrew Irvine estaria usando a camisa de George Mallory?”



“Percebemos que não era Irvine. Estávamos na presença de Mallory, a agulha no palheiro”



Então, finalmente percebemos que não era Irvine. Não havíamos redescoberto o “velho inglês morto” de Wang Hong Bao. Estávamos na presença do próprio George Leigh Mallory – “O” homem da montanha, “A” agulha no palheiro.
Mallory era o homem cuja ousadia e determinação nos impressionava desde crianças. E agora estávamos tocando nele. Percebemos, então, os braços musculosos do alpinista -depois de todos aqueles anos, Mallory ainda era uma figura impressionante.

Inicialmente estávamos inclinados a ir para casa com aquela informação e voltar num outro dia para escavar e procurar. Mas sabíamos que tão acima no Everest poderia não haver um outro dia e havia a necessidade de perturbar Mallory mais um pouco para constatar que aquela teria sido sua última e maior chegada ao topo. Não encontrávamos a câmera, o principal meio de provar aquilo.

Continuamos o trabalho. Ele não tinha machado de gelo, nem oxigênio (provavelmente usou tudo durante a subida e jogou fora as garrafas vazias). Mas coisas marcantes apareceram, a começar por um altímetro de 30 mil pés (aparentemente quebrado na queda) e uma carta de sua esposa, guardada no peito dele, perto do coração. Estávamos quase no limite do oxigênio quando Jake encontrou os óculos de proteção num dos bolsos. Aquilo siginificava que quase não havia luz quando o acidente ocorreu. O que seria um sinal claro de que Mallory e Irvine tinham escalado o dia todo e já estariavam descendo, pois foram vistos pela última vez em torno do meio dia.

Depois de pegar algumas pedras para o enterro, Andy leu o rito cerimonial de uma igreja de Bristol (no Reino Unido) e juntamos nossas coisas outra vez. Enquanto os demais andavam, eu dei uma olhada mais calma à cena. Fiquei maravilhado do Conrad ter encontrado essa agulha no palheiro e comecei a compreender o que ele tinha falado assim que cheguei ao local. Ele mantinha os olhos naquela figura, tentando entender como alguém trabalhava com toda aquela neve e contra a gravidade. Era como se o um dos maiores alpinistas da atualidade tivesse se encontrado com o maior alpinistas da história.”

Last modified: maio 10, 1999

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