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Rally aéreo dos Sertões

Redação Webventure/ Aventura brasil

Aviões na praia  em Jericoacoara (foto: Gustavo Mansur)
Aviões na praia em Jericoacoara (foto: Gustavo Mansur)

Realizar a cobertura on line de um evento que percorre mais de cinco mil quilômetros em esburacadas estradas do interior do Brasil foi o desafio me proposto pelos organizadores do VII Rally Internacional dos Sertões. Parecia mais uma missão impossível, ter que estar presente e online em cada momento da prova. Como seria possível cobrir em todas as Especiais do Rally e ter contato telefônico permanente para manter o website oficial da prova atualizado com as notícias mais recentes da competição? Seria preciso ser onipresente como Deus, ou mais rápido que os carros e motos da prova.

A solução veio na forma de um avião. Para ser mais preciso um coyote, um pequeno monomotor de fabricação inglesa de apenas dois lugares. A primeira vista o aviãozinho parece frágil e incapaz de sair de São Paulo e ir serpentando Brasil adentro até o litoral de Fortaleza para depois retornar tudo pela costa. Grande engano. Foram três Coyotes acompanhando lá de cima cada curva do Rally dos Sertões 99. Uma aventura paralela ao próprio rali, pousando em pistas esquecidas no interior do país e vendo o cenário do país mudar lentamente.

Amanhecer do dia 10 de junho. Mais uma manhã muito fria no pequeno aeroclube de Itú (SP). Quem iria imaginar a aventura que começava ali naquela pequena pista. Reunidos em torno dos dois coyotes a equipe de apoio aéreo do Rally Internacional dos Sertões checava os últimos detalhes antes da partida para a primeira perna do rali.

Imaginar que o coyote de inscrição U-4571, do piloto e médico Eduardo Gualberto seria a minha casa e meio de transporte durante os próximos 12 dias era mesmo difícil. Mas não dava para sentir insegurança, já havia voado com Eduardo em diversas ocasiões e já até havíamos feito a experiência de cobertura para Internet de outra prova de rally usando o mesmo avião. Eduardo já estava indo para o seu quarto Rally dos Sertões, pela primeira vez fora do solo e longe da equipe médica da prova. Agora prestes a ver o evento por um ângulo absolutamente novo. O outro avião, o U-5004, do diretor do evento Marcos Moraes, com um motor de 100 hp, um pouco mais potente que o nosso, também já ligava os motores pronto para as muitas milhas que tínhamos pela frente. O terceiro avião, um coyote como os nossos, decolou também naquela manhã de Atibaia (SP). O avião, pertencente a Henry Abreu, competidor de carro do Rally, pilotado pelo instrutor Rogério, levava um reporter da TV Record, ao mesmo tempo em que também fornceia algum suporte para o Rally.

Nos aviões não dá para levar muita coisa. O espaço para bagagens e mínimo, apenas o básico, que no meu caso eram algumas roupas, a câmera digital é claro o inseparável notebook. Eduardo, meu companheiro na aventura também arrumava suas malas além de conferir os últimos detalhes da nossa rota no GPS de bordo. Eduardo é um veterano nos Sertões, participando desde 1994 como membro da equipe médica da prova. Pilotando o segundo coyote da equipe, o diretor geral do Rally, Marcos Moraes, revezava o comando do manche Marcos César Caricate, piloto e instrutor de ultra-leve.

No solo uma Land Rover Defender dava cobertura total para as aeronaves. Repleta de equipamentos, peças de reposição, ferramentas, o carro foi o anjo da guarda das aeronaves. A equipe liderada por Luiz Anchieta, outro veterano nos Sertões, levava o mecânico e piloto privado Pedro Mello, que também completou muitas pernas do roteiro no comando das aeronaves, sobretudo em momentos em que a experiência se fazia necessária. Fechando o time, Fernando Gualberto, irmão de Eduardo que conduziu o Defender por mais de 5 mil km de estradas nem sempre maravilhosas.

Meio que com pressa, talvez antes do sol sair do horizonte, lá fomos nós pelos ares rumo a Cássia (MG), onde um multidão assistia a largada para a primeira Especial do VII Rally Internacional dos Sertões.

A Especial de Pato de Minas foi surpreendente. Quem iria imaginar aqueles cânions, aqueles rios de água transparente. Estar em um avião permite ter uma idéia da beleza total de uma região que muitas vezes quem está no solo nem percebe. Era comum chegarmos as cidades no final do dia em êxtase com a beleza do local e conversando com as equipes da organização em terra perceber que ninguém viu o que nós vimos. A região próxima a Pato de Minas foi uma destas. Não só os cânions, mas os primeiros chapadões imponentes no horizonte, uma imagem que ia se tornar comum daí para a frente no Planalto Central.

A segunda Especial foi ainda mais fantástica. Em uma fazenda na fronteira de Goiás com Minas, a pista de pouso onde fizemos o reabastecimento ficava bem ao lado da trilha por onde as motos e os carros passavam a toda velocidade, quase jogando a poeira para cima dos aviões.

Enquanto eu me ocupava fotografando os carros, Marcos e Eduardo pendurados em um telefone Iridium tentavam contato com o DAC de Brasília, cidade pernoite do Rally após Pato de Minas. O desafio era conseguir uma autorização especial para pousar naquele fim de tarde em pleno autódromo de Brasília. Parece coisa de maluco? Não era. O autodromo era o único lugar disponível para pousar os coyotes dentro do Distrito Federal. A segunda opção seria uma cidade ainda em Goiás, a mais de 45 minutos de distância de Brasília. Idéia desanimadora.

Depois de muitos pulsos internacionais de satélite, ninguém havia conseguido uma resposta clara dos responsáveis pelo espaço aéreo da cidade. A impressão era que ninguém queria se preocupar com dois aviões malucos querendo pousar em pleno autódromo da capital. O negócio era arriscar. No U-5004 com Marcos embarcou o Pedrinho, encarregado de fazer os contatos com a centro de controle aéreo de Brasília, usando sua experiência de piloto privado para convencer os responsáveis a nos deixar pousar na reta final do autódromo. A autorização só veio a poucos metros de entrarmos no espaço aéreo do DF. Alívio total no ar e lá fomos nós rumo ao Lago Paranoá. Sobrevoando em paralelo ao Eixo Monumental, pousamos no retão do autódromo. Só faltava uma bandeira quadriculada para receber os aviões. 🙂

Primeira Especial do dia depois de Brasília. Sobrevoávamos o final do trecho cronometrado sobre uma vilazinha esquecida na fronteira de Goiás com Tocantins quando Eduardo me avisa: “acho que estou vendo uma pista lá na vilazinha”. Animado diante da possibilidade de tirar fotos no solo dos carros na chegada e de quebra fazer uma entrevistas com os pilotos dei força: “vamos lá ver se dá pra pousar”. Todo animado Eduardo olhou a pista e disse “Tem um 400 metros. Deu para medir por aquele campo de futebol oficial ali do lado”, me explicou pelo rádio do avião enquanto virava as asas do coyote para eu ter uma visão da possível pista com o campo de futebol.

Pensei, “Como é que ele sabe que tem 400 metros pelo campo de futebol? Como é que ele sabe que o campo de futebol tem o tamanho oficial?”, mas resolvi me calar na minha ignorância no que diz respeito a parte técnica do vôo. E lá fomos nós para a cabeceira da minúscula pista, diante dos olhares assustados de uns poucos moradores e algumas vacas que pastavam do lado. No primeiro contato com o solo o aviãozinho saiu pulando feito doido e na nossa frente a pista começou a se transformar em uma rua com casas do lado e crianças assustadas com a presença daquele intruso aéreo. Enfim, não era uma pista e tampouco tinha os 400 metros, talvez nem tivesse 300. Apenas uma rua inacabada da vila, e o coyote passou raspando a menos de três metros das casas.

Mas apesar dos susto não desistimos de procurar pistas nas pequenas cidades onde terminavam as Especiais. Em geral os coyotes conseguiam pousar mesmo em pistas minúsculas. O procedimento combinado era verificar o estado da pista e o tamanho com um pequeno rasante antes de arriscar um pouso, e sobretudo manter avisado a alguma outra aeronave da competição da intenção de pousar e das coordenadas da pista.

O GPS foi um companheiro inseparável e surpreendente. Mesmo nos lugares mais remotos o aparelho indicava as melhores opções de pistas. Também tinhamos programadas as coordenadas das Especiais do Rally e de possíveis locais de pouso perto da prova.

O esquema de reabastecimento desabou em Palmas. O motorista da L-200 com nosso precioso combustível de aviação capotou feio na estrada saindo de Palmas (Tocantins). O carro ficou completamente destruído e com ele também se acabou nosso esquema paralelo de reabastecimento que era a garantia de combustível mesmo em pistas remotas.

O primeiro momento crítico foi a partir de Carolina (Maranhão). Sem combustível no meio do trajeto tínhamos que enfrentar a grande distância até Teresina. A primeira descoberta foi que acompanhar o Rally naquele dia seria impossível. Na pista Eduardo, Pedrinho, César e Rogério tentavam descobrir algum lugar no meio do caminho onde reabastecer. O mapa do Maranhão aberto, o GPS na outra mão, a situação era mesmo complicada. Nenhuma cidade entre Carolina e Teresina oferecia garantia de ter combustível para reabastecer os aviões.

Foi quando lá da sala de controle do aeroporto o funcionário da Infraero local avisou que um avião havia avisado na freqüência aberta aérea que havia combustível em Barra do Corda (MA), uma pequena cidade localizada exatamente no meio do caminho até Teresina. Não havia nenhuma segurança nem garantia de que o combustível realmente estivesse lá, mas não tínhamos outra alternativa. Refeitos os planos de vôo e traçada a melhor rota decolaram os três coyotes para um longo vôo em formação até Teresina.

Pela primeira vez saíamos da rota do Rally, sobrevoando o interior do Maranhão. Depois de duas horas e meia de vôo resolvemos pousar em Grajaú (MA) onde o GPS indicava uma pista de pouso de bom tamanho. A pista, ao lado de uma rodovia tinha uma de suas cabeceiras a poucos metros de uma churrascaria ao estilo beira de estrada, para caminhoneiros. Aquela altura do campeonato a foma era grande e ninguém ligou. Fomos todos almoçar carne seca e uma suspeita buchada de bode.

Finalmente Barra do Corda (MA). O aeroporto não passava de um bar com algumas cadeiras estendidas em direção a pista. Dia de jogo de seleção, final da Copa América e um sanfoneiro se preparava para animar a torcida. Mas havia combustível !! Nem dava para acreditar que ali, no meio do sertão maranhense encontramos combustível naquele aeroporto esquecido. Reabastecidos o novo desafio era chegar em Teresina antes do anoitecer. Os coyotes são classificados como ultra-leves e não tem permissão para operar durante a noite. Correndo contra o tempo, foi possível alcançar a capital do Piauí com os últimos raios de sol no horizonte. O simpático controlador de vôo do aeroporto internacional de Teresina fez pouco caso do horário e permitiu nosso pouso na pista iluminada da cidade.

Especial do Piauí. A largada na cidade de Piracuruna (PI). No aeroporto da cidade a pista de pouso asfaltada, ou quase, contrastava com a humilde casinha que servia de terminal. Na pista o responsável pelo aeroporto, um típico sertanejo, quase não se cabia de tanta alegria em finalmente ver seu serviço sendo utilizado por alguém.

Saindo de Piracuruna (PI) a próxima parada programada era Parnaíba, principal balneário do curto litoral piauiense. A visão do mar azul do nordeste para quem a dias sobrevoa apenas o seco sertão é reconfortante. Para completar o quadro fizemos um curto sobrevôo sobre as dunas no delta do Rio Parnaíba. Visual simplesmente lindo e inesquecível.

No dia seguinte o trecho cronometrado foi exatamente nas Dunas. De lá seguimos direto pelo litoral do Piauí rumo ao Ceará, mais diretamente para o paraíso de Jericoacoara onde terminou o último trecho cronometrado do Rally Internacional dos Sertões 99. Em Jericoacoara o plano era pousar na praia aproveitando a maré baixa. Melhor do que imaginávamos acabamos parando em plena praia principal de Jericoacoara ao lado da duna que é símbolo da cidade. Um grande almoço preparado pelo governo do Ceará esperava os participantes do Rally que chegavam pouco a pouco para a festa.

De lá direto para Fortaleza, sobrevoando as praias paradisíacas do litoral nordestino. A capital cearense foi o ponto final do Rally dos Sertões 99, mas não da aventura aérea. Os aviões ainda retornaram para São Paulo voando pela costa brasileira. Um saldo total de mais de 11.500 km de vôo, em mais de 72 horas no ar. Um possível recorde brasileiro de vôo continuado em ultra-leve.

Equipe Aérea do VII Rally Internacional dos Sertões

  • Eduardo Gualberto
  • Fernando Gualberto
  • Gustavo Mansur
  • Luiz Anchieta, “Luizão”
  • Marcos César Caricate
  • Marcos Ermírio de Moraes
  • Pedro Mello, “Pedrinho”

    Especificações técnicas
    U-4571
    Aeronave Ultraleve Avançada

    Marca Rans, modelo Super Coyote S6S-II, ano de fabricação 1997, Kit de
    origem americana montado em Sumaré (SP). Equipada com instrumentos básicos de navegação e monitorização do motor, GPS Garmin III Pilot, radio VHF aeronáutico motor Rotax 912 (quatro tempos, quatro cilindros contrapostos refrigerado a água) com potência de 80 hp. 7 horas de autonomia a 65% de potência. Velocidade de cruzeiro 160 km/h. Velocidade máxima 195 km/h.

    Peso vazio: 260 Kgs; Peso total: 490 kgs; Carga útil: 330 kgs; Área alar: 15,03 m2; Envergadura: 10,62 m; Corda: 1,420 m; Aspect Ratio: 7.66:1; Comprimento: 6,096 m; Combustível: 98 litros (AVGAS); Assentos: 02 (lado-a-lado).

    U-5004
    Aeronave com as mesmas características da anterior porem equipada com o motor Rotax 912s que gera 100 hp; Pneus tipo tundra para pousos em pistas não preparadas, portas panorâmicas, GPS-COM Garmin 2400 e um providencial CD Player para os trajetos mais cansativos.

    Este texto foi escrito por: Gustavo Mansur

    Last modified: agosto 13, 1999

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